Por Filippo Pitanga*
Como os olhares plurais no audiovisual estão elevando as fronteiras estético-narrativas em territórios outrora tidos como periféricos para o cinema hegemônico, como no Hemisfério Sul do continente Africano e no Brasil. Esta semana estreou o espetáculo visual “Black is King” protagonizado e dirigido por ninguém menos que a maior representação artística da música contemporânea: Beyoncé. Ela dividiu as câmeras com Emmanuel Adjei e Blitz Bazawule, ambos originários de Gana, num projeto tão visualmente deslumbrante que perpassa conceitos de videoarte, instalação e outras experiências além-fílmicas – algo maior que apenas um álbum-visual como Beyoncé o descreve (assista aqui). Bem como este sábado estreou no cine drive-in em SP nosso maior representante brasileiro laureado no Festival de Berlim no início do ano, como melhor filme da Mostra Geração: “Meu Nome é Bagdá” de Caru Alves de Souza, outra obra que eleva paradigmas para outro patamar, também se servindo de signos pop e musicados. E são dois feitos de fortes influências para o futuro em seus respectivos campos de atuação.
Vale fazer um interlúdio sobre a morte do cineasta britânico Alan Parker esta semana, que legou cults como “Coração Satânico” e “Mississipi em Chamas”, como igualmente de filmes musicados como “Evita” e “Pink Floyd: The Wall”. Ambos dividiram a crítica, que às vezes os criticaram negativamente, mas foram aclamados pelo público por materializar e dar corpo ao imaginário sonoro de milhões de fãs pelo mundo. E é por isso que voltamos ao desbunde visual de Beyoncé como algo tão inovador. “Black is King” nasceu como um projeto paralelo, mas que na verdade resulta como principal: chamada para fazer a trilha sonora da animação “O Rei Leão” de 2019 (além de atuar dublando a personagem da leoa Nala), Beyoncé já havia lançado no ano passado uma pequena amostra das pesquisas e jornadas espirituais dela na África com a música “Spirit” – um videoclipe extremamente conceitual que não só ampliava, como melhorava o fraco filme da Disney que tentou recriar em 3D sem sucesso o universo do clássico de 1994.
Mas Beyoncé não parou por aí e reimaginou a cosmologia da única animação da Disney passada no continente africano até hoje, só que com animais selvagens ao invés de seres de corpo e alma, e trouxe para um live action ocupado de fato por imaginários identitários africanos a magia da transmissão de geração para geração da realeza ancestral e cósmica. Beyoncé trouxe códigos e signos ritualísticos ricos em herança cultural que se traduziram numa das prováveis maiores influências plásticas dos últimos tempos que o audiovisual poderia gerar. Além de hipnótico, é tanto transgressor e inovador em tantos níveis quanto reverencial: De influências que ela traz de volta de álbuns anteriores como “Lemonade” e a turnê “On The Run”, como com os filmes “Daughters os The Dust” de Julie Dash e “Touki Bouki” de Djibril Diop Mambéty (1973) – saiba mais aqui.
Com toques de afrofuturismo (conceito artístico-filosófico que ressignifica a tabula referencial do mundo a partir da ancestralidade africana para reimaginar o presente e as possibilidades futuras), trechos de grandes pensadores sobre o assunto mesclados na narração em off que intercruza a narrativa musical, e até participações mais do que especiais, como de seu marido Jay-Z e o cantor Kendrick Lamar, as cantoras Jessie Reyez e a ex-parceira Kelly Rowland, a modelo Naomi Campbell e a atriz Lupita Nyong’o, o filme ainda faz homenagem ao grande ator James Earl Jones, que dubla o personagem Mufasa mais uma vez (pai de Simba em “O Rei Leão”). Valendo citar também até um toque brasileiro, com figurino pela estilista Loza Maleombho. – E, na humilde opinião deste que vos escreve, acrescento diálogos com nossa estética no cinema brasileiro como com o filme “Negrum3” de Diego Paulino e “Kbela” de Yasmin Thayná, exemplificando que há vozes ecoando um diálogo muito potente no mundo em estéticas contra-hegemônicas.
Falando agora do laureado empreendimento criativo brasileiro que estreou este sábado no cine drive-in, “Meu Nome é Bagdá”, antes mesmo da premiação principal do 70° Festival de Berlim em fevereiro deste ano, o cinema brasileiro já ganhava o maior troféu da Mostra Geração que é uma das paralelas à competição principal pelo Urso de Ouro. Uma seção dentro do Festival com perfil de temas infanto-juvenis, mas atentando que não se trata necessariamente de filmes infantis, e sim sobre temas da infância e adolescência, podendo até ser mais maduros ou intensos do que alguns das outras Mostras.
Nosso maior reconhecimento foi com "Meu Nome é Bagdá" de Caru Alves de Souza, numa coprodução da Manjericão e Tangerina Filmes. Uma narrativa moderna e fluida sobre jovens skatistas e questões de gênero entre meninos e meninas, os quais precisam aprender a enxergar uns aos outros como indivíduos complexos e livres para fazer suas escolhas sem amarras ou codificações impostas pela sociedade contra a vontade da pessoa. Pode parecer complexo ao espectador que estiver sobrecarregado pelas doutrinações contemporâneas do governo brasileiro sobre "meninas usarem rosa" e "meninos usarem azul", porém é exatamente sobre desconstruir isso. E o faz com bastante elegância, como se filiando a linhas de pensamento sobre gênero e raça, bem como a teoria queer de nomes como Michel Foucault, Judith Butler e Paul Preciado.
E esse estofo filosófico se encontra traduzido na estética do filme, como com câmeras tão fluidas quanto a questão da autodeterminação de gênero, onde a diretora de fotografia Camila Cornelsen colocava a perspectiva da câmera também sobre um skate acompanhando as atletas no ritmo do movimento. Sem falar na subjetividade da fonte de ângulos diferentes, pois a protagonista, repleta de agência e atitude na pele de Grace Orsato, também caminha com sua própria câmera na mão, filmando ao mesmo tempo que o filme registra seus movimentos. Uma câmera-personagem (confira debate com a equipe aqui).
Por último, porém não menos importante, vale triangular o encontro de olhares e a imagem produzida com a música composta no extracampo, pois a trilha sonora reescreve a realidade com suas letras e caminhos rítmicos. Não apenas o desenho de som e canções pintam a tela de muitas cores, como abrem espaço para cenas mais performáticas, há de exemplo as danças e coreografias que exorcizam os males reais. Duas das cenas mais lindas neste sentido são a capoeira da protagonista vestida com a juba de um leão lado a lado de suas amizades trans e queer, bem como a cena da boate onde sua irmã e amigas dançam em sua defesa. Uma sororidade. E esta linguagem LGBTQ é uma das maiores vanguardas do cinema brasileiro atual, arrebatando prêmios quase todo ano, e demonstrando que também estamos na dianteira da criação artística para o mundo.
*Filippo Pitanga é jornalista e advogado, crítico, curador e professor de cinema