Você sabe quem é Preta Ferreira? Você vem acompanhando a causa dos trabalhadores sem teto (MTST)? Você se inteirou sobre a luta contra a prisão irregular de Preta, como uma das líderes do movimento, e a perseguição política a ela e sua mãe, Carmen Silva, taxadas de terroristas unicamente por defenderem o direito constitucional de moradia para todos? Pois da próxima vez que você perguntar o que o cinema brasileiro pode fazer por você hoje, saiba que a dupla Preta Ferreira e Carmen Silva acaba de brilhar na telona da edição de aniversário do 70º Festival de Cinema de Berlim, com o filme “Cidade Pássaro” de Matias Mariani, na competição da Mostra Panorama – o qual faz parte de um recorde de filmes brasileiros, como nunca visto antes.
O que o cinema brasileiro e estas duas ativistas supracitadas possuem em comum? Todos estão sofrendo uma injusta perseguição deste governo atual que não entende ou não quer entender direitos básicos, como o acesso à cultura e à moradia. E a função da sétima arte, para além de informar, também não seria justamente trazer conscientização para tentar mudar a sociedade?
Prova disso foi o pronunciamento recente do diretor do Festival de Berlim, Carlo Chatrian, que confirmou o fato de ter convidado o cineasta Kleber Mendonça Filho (“Bacurau”) para o Júri oficial que decidirá o Urso de Ouro a fim de mandar um recado para nosso país: o de que eles estão preocupados com o nosso cinema brasileiro. Estamos enfrentando um descaso sem precedentes. Afinal, nem a própria Ancine se pronunciou oficialmente a parabenizar os diretores e diretoras pela façanha – o que seria papel tradicional da Agência Nacional do Cinema. Valendo recordar ainda todos os ataques diretos ao setor, como o desmantelamento de políticas públicas. Não à toa, Kleber Mendonça, no primeiro dia de Festival, reiterou a mesma preocupação de Chatrian na coletiva de imprensa do Júri Oficial, e reiterou que nosso governo está sabotando o cinema brasileiro.
Porém, são as qualidades de nossa sétima arte que precisamos realçar, até para nos lembrar o quanto merecemos este reconhecimento... E, voltando a falar do filme “Cidade Pássaro”, vale frisar que não é por mera força política que Preta Ferreira e sua mãe figuram entre os espaços da narrativa. Na trama, o direito à moradia está diretamente ligado ao novo ciclo de imigrantes africanos que aporta cada vez mais no Brasil, como em São Paulo. Alguns filmes já abordaram isso, como o curta “Liberdade” de Vinícius Silva e Pedro Nishi. Mas é a partir da história de dois irmãos que vieram da Nigéria que “Cidade Pássaro” irá entrelaçar suas histórias familiares com a situação do país, bebendo da fonte documental, na forma, para traçar uma inesperada ficção metafísica a partir da realidade do extracampo de seus personagens no conteúdo.
A busca de um irmão pelo outro, para além de evocar de forma investigativa a linguagem diaspórica, também evoca línguas diferentes, como desde o igbo ao inglês, perpassando até pelo húngaro, para demonstrar que a linguagem do cinema pode superar quaisquer diferenças. Afinal, se pode parecer um pouco com o realismo mágico de filmes de fantasia que estes personagens perdidos numa São Paulo tão dura se encontrem como num piscar de olhos, como numa música compartilhada em comum (mérito do desenho de som e da trilha), o próprio roteiro ainda pode surpreender. O que a princípio parece assumir soluções aparentemente fáceis, acaba dialogando e respondendo a estes facilitadores numa fusão entre a espiritualidade e a ancestralidade que os personagens trazem consigo... com uma inusitada inserção de física quântica! Sim, a matemática aliada ao espírito. Coisas como a “string theory” (teoria das cordas) ou “entanglement” (entrelaçamento), nomeadas expressamente no longa-metragem, caem como uma luva na superação da ficção como retorno à realidade e à responsabilidade de o cinema não apenas evocar a teoria, mas nos impulsionar à prática da resistência e do engajamento.
Se os desafios iniciais da trama sobre deslocamento e problemas de comunicação podem parecer muito similares aos nossos na vida real, da mesma forma, o extracampo do filme pega emprestadas muitas de nossas lutas e causas nobres. Como disse o diretor Matias Mariani em debate após a sessão ovacionada do filme, a produção ensinou por meses a se ler e escrever em português para inúmeros imigrantes que participaram do projeto, facilitando a sua adaptação. Da mesma forma, Preta Ferreira, também presente em Berlim, graças a uma difícil autorização judicial auxiliada pela produção do filme, e visivelmente emocionada por ter recebido esta homenagem na noite de estreia, respondeu à dedicatória agradecendo em retorno o quanto também o cinema pode fazer por nós hoje, atuando ativamente na transformação da sociedade.
Confira abaixo algumas das palavras emocionadas de Preta: