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Querida Beth, demorei um tanto pra escrever só pra poder contar como aconteceu tudo, direitinho. Antes de mais nada, é bom dizer que, apesar do roubo de espaço da tentativa malograda de golpe na nossa vizinha Venezuela – que você festejaria com certeza – a sua partida estava na capa de todos os jornais do país. Escolheram fotos lindas e todos, quase sem exceção, te chamavam, com justiça e um certo reducionismo, de ‘madrinha do samba’.
O velório aconteceu na sede do seu querido Botafogo e todo mundo apareceu por lá. O Zeca Pagodinho disse pra quem quisesse ouvir que ele só era o Zeca Pagodinho que o Brasil ama graças a você. Não bastasse isso, o ex-presidente Lula mandou uma coroa de flores com uma fita onde estava escrito: “O samba perde sua madrinha, o Brasil uma filha guerreira e eu uma grande amiga. Gratidão pra sempre. Lula”.
Mas olha, Beth, o bom mesmo é que o pessoal acabou se despedindo de você do mesmo jeito de sempre, ou seja, com uma baita e emocionada cantoria. Todos ali, sabiam, a cada um daqueles versos, o tanto que você, muito além da grande cantora que sempre foi, teve de importância na promoção da nossa música, sobretudo o samba.
Lembro bem, lá pelo final da década de 70, do Nélson Cavaquinho contando pra gente em uma entrevista de rádio que era graças a você que ele tinha uma carreira, um reconhecimento como cantor. Ouvi o mesmo do Cartola e de vários outros.
Hoje mesmo, revendo a sua vida e trajetória, vi o vídeo do lançamento do Clube do Samba. Cercada de gente como o João Nogueira, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Nélson Sargento e tantos outros, você espinafrava a disco music, que ameaçava o samba em vendagem. Tinha gente que falava até em extinção. Imagina que ameaça besta se a gente for pensar. Olha só o tanto de gente que, de lá pra cá, você nos trouxe e que fez, ao longo de todos esses anos, rever e reviver o nosso ritmo maior em várias e tão variadas vertentes.
Só aqui, do lado de casa, em São Vicente, você lançou os irmãos Sombra e Sombrinha, que fizeram tantas coisas maravilhosas. Só de lambuja lembro a sua linda gravação de “Além da Razão”, que os dois compuseram com o Luiz Carlos da Vila, outro craque que chegou pelas suas mãos. Quanta beleza, quanta novidade, juventude e tradição misturadas em tão poucos minutos de música.
Essa turma se encontrava toda ali, no Cacique de Ramos, uma mina de ouro que você descobriu e mostrou pra todo mundo e que nos trouxe tanta gente, mas tanta gente que não dá nem pra contar. Só de saída, além do Zeca, veio de lá o Almir Guineto, Arlindo Cruz, Jorge Aragão, Bira Presidente e muitos mais. Foi graças aquele seu lindo álbum “Pé no Chão”, que conta com a participação do grupo que tudo começou.
Lembrei tanto também do dia em que você apareceu em Brasília para nos trazer o seu “Beth Carvalho Canta O Samba Da Bahia Ao Vivo”. A despeito da grande afinidade que você tinha com o governo naquela época, foi inesquecível ver você botar pra sambar aquele monte de gente engravatada com a sua música.
No final das contas, acabei o dia ouvindo você e Mercedes Sosa cantando a versão da canção “Solo le pido a Diós”, do argentino León Gieco. Uma breve ironia pairou no ar ao rever o verso:
“Eu só peço a Deus
Que a dor não me seja indiferente
Que a morte não me encontre um dia
Solitário sem ter feito o que eu queria”
Poucos artistas chegaram ao fim da jornada tendo imprimido tanto significado à própria existência. Nada depois de você será o mesmo por aqui.
Na hora final, Beth, a sua gente apareceu sim. Vieram todos agradecer a sua obra, tudo que você sempre quis e fez muito bem. Todos juntos, como – repito pra sempre lembrar a canção – você sempre quis e fez nessa sua vida impregnada de coletivo.
E, mesmo indo embora agora, não se preocupe. O seu sorriso continua aqui em volta, enchendo o mundo de alegria e esperança em cada uma das coisas que você inventou e descobriu.