Escrito en
CULTURA
el
A estranheza que causou o cantor e compositor Chico Buarque vencer, por unanimidade, o Camões, o prêmio mais importante de literatura da língua portuguesa, é a mesma que causou a vitória do prêmio Nobel por Bob Dylan. Ou seja, puro preconceito. Canção popular não pode ser considerada literatura.
Não pode e não é. Mas, ao mesmo tempo, é. E isso é inegável. Enfileirem as palavras de algumas canções de Chico e apostem num belo livro de poesia. Ou dois ou três, enfim, uma obra inteira que não deve em nada a alguns dos nossos melhores.
Mas o problema não é este. O escritor Chico Buarque é conhecido em certos países onde o compositor Chico Buarque era, até então, um ilustre desconhecido. A cena se repetiu em inúmeras entrevistas que o artista deu mundo afora: “Mas você também toca violão e compõe canções?”, perguntou espantado o entrevistador.
A nós, brasileiros, é difícil ter ideia do que isto significa, tamanha a importância do compositor para a nossa nacionalidade. Suas canções estão impregnadas em nós, caminham conosco desde sempre e servem, sem medo de exagerar, de legenda para o que temos sido e vivido nas últimas décadas.
Chico, ao agradecer o prêmio, disse que se sentia honrado de estar ao lado de Raduan Nassar. O escritor entrou para a história da nossa literatura com dois romances absolutamente geniais, “Lavoura Arcaica” e “Um copo de cólera”, além do volume de contos “Menina a caminho” e só. Depois disso, se retirou e, em uma de suas raras entrevistas, afirmou resoluto: “o que mais gosto de fazer na vida é dormir”.
Chico, ao contrário, parece estar sempre acordado. Não para de produzir, ora discos, ora romances e, em priscas eras, peças de teatro etc. Tem uma vasta obra que, muitas vezes, parecem ser de autores diferentes. Ouvir seus discos recentes nos estabelece uma enorme distância da sua obra inicial. O autor da canção “Caravanas” não é o mesmo de “Com açúcar, com afeto” e por ai afora.
O mesmo se pode dizer do autor de “Fazenda Modelo” para o de “O Leite Derramado” ou, mais longe ainda, da peça “Calabar”. Isso tudo se chama capacidade de reinvenção. Chico é autor de uma obra irretocável que ele, incansavelmente, repensa, refaz, recria arranjos e confessa que se sente feito o pintor que invade o museu de madrugada para pincelar seus quadros.
Qualquer um que se pudesse imaginar o autor da obra de Chico Buarque estaria deitado eternamente em berço esplêndido. Ele não, e é isso o que faz do Chico o Chico e ponto. Não bastou ter nascido na casa que nasceu, ter tido a formação que teve e ter o talento que tem. Sua obra é resultado de trabalho, muito trabalho. A canção “Beatriz”, com Edu Lobo, ou “O que será (à flor da pele) e “Construção”, só dele, justificariam qualquer prêmio que se entrega na face da terra.
Mas ele fez muito mais e não parece ter – para o bem de todos – a menor intenção de parar. Posto isto, corroboro a campanha do escritor Manoel Herzog para que, na próxima, se entregue logo o Nobel para Chico.