Reflexões sobre os primeiros episódios de Game of Thrones, por Marina Fuser

Mantive certo silêncio até então para entender onde os roteiristas queriam chegar, esperando um segundo episódio para decidir o que funcionou para mim. O fato é que decolei desde o início, acompanhando as sagas dos "heróis" que confluem para um mesmo ponto

Foto: HBO/Divulgação
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Por Marina Costin Fuser* [SPOILER ALERT] "Morno", "fraco", "romance cafona", e "8x1" foram alguns dos epítetos lançados por críticos de cinema ao referir-se ao primeiríssimo episódio da temporada final de Game of Thrones. Não há dúvidas de que aquela introdução não agradou muita gente que entende de cinema, pecando pelo seu excesso de didatismo e pela escolha por um plot sem grandes acontecimentos, destrinchando a narrativa em capilaridades que reestabelecem a jornada de cada personagem. Mantive certo silêncio até então para entender onde os roteiristas queriam chegar, esperando um segundo episódio para decidir o que funcionou para mim. O fato é que decolei desde o início, acompanhando as sagas dos "heróis" que confluem para um mesmo ponto. O centro dos acontecimentos, e o bastião do poder, se desloca de King's Landing para Winterfell. O destino dos sete reinos depende das forças que se concentram na sede do protetorado do Norte. O conflito se define de maneira não tão divertida assim nas assembleias entre os aliados nortenhos, e nos comentários sagazes de Varys e de Tyrion que se seguem. Este último fala menos, mas está mais afiado. Varys se denota a uma unidade bastante frágil e efêmera quando aponta ao súbito e furtivo encontro entre Jon Snow e Daenarys Targaryen logo antes de darem uma voltinha com os dragões.  Antes de comentar a famigerada cena melosa, que causou tanto repúdio nas redes, atento para o teor político deste encontro. O conservadorismo nortenho conta, inclusive, com a cumplicidade de Sansa e Arya, preocupadas em assegurar a autonomia do Norte, e temerosas que Jon repita o erro fatal de seu irmão Robb, que cai nas graças de uma estrangeira e põe tudo a perder. O clima de desconfiança entre os nortenhos não é para nada sem fundamentos. Há todo um arquivo de traições e imprudências que se inscreve nesta união entre os dois amantes. Isto além de um repúdio popular quando o nomeado rei do norte abre mão de sua coroa por amor. Ainda que seja um amor cindido entre fazer o que é certo para assegurar a vitória dos vivos na guerra que se avizinha, e o amor a uma mulher ambiciosa, com tendências despóticas, filha do Rei Louco. No momento que ambos se veem face a face com os dragões, a cena em que um dragão se permite ser tocado por Jon Snow se repete, de modo um pouco forçado, é certo, mas que sutilmente confirma uma verdade que todavia não lhes fora revelada: que ambos carregam sangue de dragão em suas veias. A cena piegas do beijo em frente a uma magnífica cachoeira de geleira é interrompida pelos dragões que os fitam, intimidando Jon Snow, que mantém seus olhos abertos apesar da entrega. O clichê romântico hollywoodiano comporta camadas de complexidade que não se encerram num deleite fácil, comum a essas cenas. Os dragões conhecem instintivamente o segredo do autêntico herdeiro dos Targaryen, o próximo na linha da coroa. É possivelmente aos Targaryen que se remete o símbolo cadavérico de uma espiral com muitos braços compondo um círculo com o corpo morto-vivo do último sobrevivente da família Umber ao centro na parede de uma sala cavernosa, encontrado pelos sobreviventes da Patrulha da Noite. A semiótica desta cena pode ser uma mensagem do Rei da Noite, sobretudo quando os aliados lançam fogo no arranjo, como o último retoque para que este configurasse a imagem de um círculo de dragões. É plausível que o Rei da Noite conheça bem seus inimigos. Mas o símbolo da espiral também aparece nas pinturas rupestres dos Primeiros Homens na caverna em Dragonstone, onde Jon e Daenerys procuram vidro de dragão na sétima temporada. Já na terceira temporada, Jon, Mance Rider, Tormund e Ygritt encontram restos de cavalos multilados dispostos em espiral na neve. Prevalece o enigma desses espirais, como uma roda da fortuna que se desdobra ao infinito. Precisamos prestar atenção nesses símbolos.  No primeiro episódio, Cercei fala desde de um trono de ferro isolado, numa posição vacilante, fadada, mais uma vez, a ter que fazer sacrifícios degradantes para garantir o apoio do exército e da frota de Euron Greyjoy, que consegue o que quer da rainha, para depois descobrir que fora traído pela sobrinha, que mata seus soldados e recupera pelo menos parte da frota. A chegada de Strickland, capitão general da Companhia Dourada e lorde dos Strickland, exilado de Westeros e seu exército, parece causar uma boa impressão na rainha, e promete agregar forças ao trono de King's Landing. Cercei parecia frustrada pela ausência de seus elefantes, sugerindo um capricho colonial que fetichiza o oriente. Elefantes não suportariam uma viagem tão longa de navio. Mas os planos ambiciosos da rainha têm um "Norte": deixar que as tropas aliadas de Winterfell se desgastem, lutando contra os caminhantes brancos, assegurar o domínio dos sete reinos e vingar à traição do protetorado do Norte e, inclusive, a "traição" de seus irmãos, que se somam às tropas aliadas. Esta missão é confiada a Bronn, guerreiro mercenário que mantém profundos vínculos de amizade com ambos. No segundo episódio, King's Landing é posta de lado, para focar nos bastidores dos preparativos da guerra dos vivos contra os mortos. Se Winterfell configura um ponto de encontros, Daenerys Targaryen é o hiato desconfortável no encontro entre inimigos de morte, que seria completamente forçado se não fosse a introdução cuidadosa da abertura, quando se escolheu fornecer mais solidez aos encontros que se firmam, ao invés de entreter o público com grandes acontecimentos. Com efeito, a rainha dos dragões é vista como pretensiosa, ao exibir todo um arquivo de títulos: "Daenerys Nascida da Tormenta, da Casa Targaryen, Primeira de Seu Nome, a Inqueimável, Rainha dos Ândalos e dos Primeiros Homens, Khaleesi do Grande Rio de Grama, Quebradora de Correntes, e Mãe dos Dragões". E assume uma postura defensiva frente à desconfiança dos insubordinados do Norte. No segundo episódio, quando os aliados decidem acolher Jaime Lannister, ela deixa claro que sua intenção desde o início não era exatamente quebrar correntes e libertar escravos, mas recuperar o trono de ferro, que fora tomado de sua família. Nesta altura da trama ela tem plena consciência de quem fora e o que fizera o Rei Louco, mas a ideia de pertencimento fala mais forte. O arquétipo da rainha revolucionária e libertadora vai aos poucos cedendo lugar à imagem de uma pessoa que luta pela mesma coisa que todos que jogam o jogo dos tronos: o poder que se cristaliza no trono de ferro. Ela dá sinais de que pode vir a ser uma tirana sedenta de poder como seu pai, mas talvez seja precisamente esses sinais que a humanizam numa trama de personagens moralmente complexos, onde o bem e o mal se entrelaçam. Por enquanto ela não é melhor ou pior do que os demais. Mas sua resposta desconfiada e incrédula face à revelação de seu amado como sendo na verdade Aegon Targaryen deixa em aberto um conflito que pode vir à tona, posto que o reconhecimento desta verdade desconfortável desmoronaria seu maior desejo: a sucessão no trono de ferro. Alguns personagens crescem neste primeiros capítulos do retorno de GoT. Um deles é Samuel Tarly, o ex-covarde e sempre fiel escudeiro, que finalmente revela a Jon Snow sobre suas raízes. Sansa Stark, que aprendera com Cercei, Tyrion Lannister e Lord Baelish como funciona o jogo de poder, e pode se tornar o grande cérebro de Winterfell. Mas o personagem que mais adquire importância na trama é Bran Stark, agora como warg. Sua vidência e seu vínculo marcado na pele do Rei da Noite o tornam figura central, sem o qual não é possível a vitória dos vivos. Sam exalta Bran como  uma memória viva, e diz que sem memória não há vida. Não sabemos exatamente o que é um warg, mas a série nos fornece pistas de sua mediunidade elevada, de seus transes que se encarnam na figura hermética de um corvo de três olhos. Se Bran é uma memória viva, é uma vida que chama a morte pela cicatriz deixada pelo Rei da Noite, que tenta matá-lo muitas vezes quando este assume o semblante do corvo de três olhos. Sua aparente fragilidade é questionável. Desde que sobrevive à tentativa de assassinato por Jaime Lannister, mesmo sem poder caminhar com as próprias pernas, ele resiste ao atentado de um enviado do lorde Baelish, resiste à traição de Theon Greyjoy, e também perdura às investidas do Rei da Noite. Quando reencontra seu primeiro agressor, Bran já não é Bran. É um warg, que sabe o momento preciso da chegada de seu “velho amigo” Jaime. Com efeito, ele frustra as expectativas de um acerto de contas com Jaime Lannister. Ele não precisa erguer uma espada, e nem mesmo alterar a voz para assustá-lo, devolvendo-lhe a frase que lhe dissera em Winterfell ao atirá-lo da torre: "As coisas que fazemos por amor". A conversa entre os dois no jardim nos ajuda a conhecer um pouco mais dos objetivos de Bran, o Warg. Ele não tem o intuito de vingar a fatalidade que o tornou paraplégico. Isso são águas passadas. Sua intenção é reunir todas as forças necessárias para combater o Rei da Noite. Não há a mínima expressão de ressentimento, mas tampouco de afeto pelos seus irmãos, como se sua alma tivesse sido deixada na caverna das crianças da floresta.  Se a frieza de Bran parte o coração de seus irmãos, faíscas aquecem o inverno de Arya Stark com Gendry Baratheon, quando, no segundo episódio, ela causa uma impressão no rapaz com suas habilidades de guerreira e depois investe para cima do bastardo. Arya inverte expectativas de gênero e dribla o mal-estar da cena romântica entre Jon e Dany no primeiro episódio. É mais realista, mais crível que a iminência de uma guerra apocalítica faça com que ela crie coragem e quebre o decoro de quem toma a iniciativa, com sucesso. O calor também aquece a sala da lareira onde os guerreiros contam histórias para aliviar a tensão antes de partir para a guerra, regada a leite de cabra. Tormund conta como fora amamentado por leite de gigante, com seu jeito de glutão, para intimidar Jaime Lannister, seu possível rival na disputa pelo coração de Brienne of Tarth. Jaime a consagra  cavaleira, quebrando a tradição que não permitia mulheres nesta posição. Neste clima de festa pré-apocalítica, Podrick canta a diegese da partida dos guerreiros, que não sabem se voltarão com vida. A música se arrasta pela cena que mostra a angústia no olhar daqueles que partem para o embate entre a vida e a morte. As patas dos cavalos dos chefes dos caminhantes anunciam o prenúncio de um encontro inevitável com a morte. Aguardamos ansiosos pelo próximo episódio, que promete muito sangue. * Marina Costin Fuser é doutora em Estudos de Gênero e Cinema na Universidade de Sussex com doutorado-sanduíche na UC Berkeley, é ativista e pesquisadora feminista e LGBT há mais de dez anos, contribuindo com artigos e charlas relacionados ao tema dentro e fora da academia. Publicou o livro Palavras que dançam à beira de um abismo: Mulher na dramaturgia de Hilda Hilst.