Escrito en
CULTURA
el
Por Marina Costin Fuser*
Spike Lee deu um baile com “Infiltrado na Klan”. Os personagens caricatos jogam com a estupidez dos bufões que se preparam para vestir seus capuzes. O filme é baseado numa história real, de um policial negro que se infiltra na Ku Klux Klan em Colorado Springs no final da década de 1970. O filme mistura ficção com história, chegando a usar registros atuais de Charlottesville, manifestação violenta de supremacistas e neo-nazis de cunho abertamente racista em que morreram 3 pessoas e 38 ficaram feridas.
Os Panteras Negras, Angela Davis e Stokely Carmichael (que se apresenta como Kwame Ture) estão bem caracterizados, com discursos eletrizantes. Eu esperava falas mais densas da então líder estudantil Patrice Dumas, sobretudo quando se aflora o conflito entre seu romance com um policial e a causa. A presença insolente do policial racista dá pano pra manga: ele escancara como a instituição está próxima da Klan, mas mostra também que há espaço para mudanças estruturais.
O filme se desenrola com um trabalho de edição focado em dois planos em contraste, dois mundos que se chocam. Vivemos a angústia de um projeto investigativo mirabolante, que tem tudo pra dar errado, mas acaba por surpreender. O antagonismo entre os suprematistas e os black power se acirra, mas não sem complexidade. O filme lança luz sobre um outro grupo social: o judeu, que ganha corpo com Flip Zimmerman, o agente à paisana que se faz passar por um WASP (protestante branco e anglo-saxão). Ron Stallworth leva o corpo de um judeu, mas sua alma é negra. Seu nome e sua voz também. A associação entre o racismo e o anti-semitismo do KKK é desenvolvida com cuidado e lucidez através da confabulação entre os policiais, e pelos discursos de ódio que passam no rádio.
A metanarrativa que resgata o clássico de Griffith, O Nascimento de uma Nação, seguida de gritos dos entusiastas da Klan estabelece um paralelo com seu antagonista, Jerome Turner, que narra um episódio verídico de tortura de um homem negro, levando a plateia à euforia. "Todo poder a todas as pessoas" - gritam os jovens com black powers e punhos cerrados para cima, instigados pela esperança de justiça social e equidade.
Ao invés de apresentar um conflito entre dois extremos, o paralelismo que atravessa o arco dramático da narrativa assinala um acerto de contas de Spike Lee com Hollywood. A cena de abertura nos fornece uma pista considerável, recortada de O Vento Levou, com centenas de soldados feridos espalhados no chão de uma estação de trem, ressaltando o sacrifício e o heroísmo sulista, com a içada bandeira dos Confederados. Segue o discurso de Kennebrew Beauregard, que responsabiliza os judeus "marrons" pela miscigenação e integração social dos negros nos Estados Unidos. Os discursos que se intercalam no filme adquirem uma dimensão teatral, à revelia de sua efígie tenebrosa, expondo assim uma ferida que assombra a história do cinema: o racismo.
* Concluiu o doutorado em Estudos de Gênero e Cinema na Universidade de Sussex com doutorado-sanduíche na UC Berkeley, é ativista e pesquisadora feminista e LGBT há mais de dez anos, contribuindo com artigos e charlas relacionados ao tema dentro e fora da academia. Publicou o livro Palavras que dançam à beira de um abismo: Mulher na dramaturgia de Hilda Hilst.