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Foi minha mãe quem primeiro chamou a atenção para aquilo. Ao ouvir a canção na TV, em um longínquo 1971, na calorenta cidade praiana de Santos, ficou impressionada com a alternância da última palavra de cada verso a cada uma das estrofes. Além disso, chamou a atenção para outro detalhe. Todas as rimas – as mesmas palavras que eram alternadas – eram proparoxítonas.
Minha mãe já não existe mais, tampouco meu pai, mas desde aquele dia, e para todos os anos em diante, o disco “Construção”, de Chico Buarque – e, sobretudo, a sua canção título – é sempre uma das mais ouvidas e admiradas. Da mesma maneira que foi por ela, minha irmã e meu pai, também pelas minhas filhas e, acredito, será também por ai afora.
O fenômeno não se deu apenas na minha casa. Assim que foi lançado, o disco do Chico vendeu feito banana. Diz a história que a Philips chegou a contratar os serviços de duas fábricas concorrentes para vencer a demanda de dez mil cópias/dia. O álbum também foi eleito como o terceiro melhor de música brasileira de todos os tempos pela revista Rolling Stone.
Trata-se de um disco conceitual, quase como o “Sgt. Peppers”, dos Beatles e tantos lançados à época. Era meio moda, mas não creio que o Chico tenha caído nessa esparrela. O mais provável é que tenha sido uma coisa isolada dele mesmo ter usado a canção “Deus lhe Pague”, que abre o disco e encerra a canção título, para alinhavar tudo.
Entre as duas, ainda aparece “Cotidiano”, uma intrigante e propositalmente repetitiva melodia que narra na primeira pessoa o dia a dia de um trabalhador brasileiro. Entre elas, a linda canção de amor “Desalento”, em parceria com Vinícius de Moraes: “Corre e diz a ela/Que eu entrego os pontos”.
No lado B do LP, “Cordão”, uma típica canção de ‘falso amor’ do Chico, daquelas feitas para burlar a censura da época e esculhambar a ditadura: “Pois quem/Tiver nada pra perder/Vai formar comigo o imenso cordão/E então/Quero ver o vendaval/Quero ver o carnaval/Sair”.
Logo a seguir, mais uma obra-prima surpreende o ouvinte, aos primeiros acordes do majestoso piano do parceiro Tom Jobim, seguidos pelos intrincados versos para a sinuosa melodia de “Olha Maria”. Um ponto fora da curva que compõe de forma quase misteriosa com um apanhado de canções um tanto diretas e incisivas do álbum.
A política ainda chega um tanto disfarçada no “Samba de Orly”, com o violão do parceiro Toquinho, um verso roubado e assinado por Vinícius e a inconfundível batucada do Trio Mocotó. Um samba de exílio e tristeza.
No final das contas, Chico canta a versão em português da magistral “Minha História - Gesubambino”, do mestre Lucio Dalla e Paola Pallotino e encerra com uma linda canção de ninar para uma das filhas. Lembro, no entanto, que o disco nunca chegava ao fim na pequena vitrolinha marca Sonata lá de casa, daquelas que a tampa é a caixa com alto falante.
Hoje, da mesma maneira, é incansavelmente repetido nos headphones, Ipods, Bluethooths e afins das meninas. Não sou do tipo que gosta de elitizar as canções e as conversas, mas, ao ouvir os sucessivos, canhestros e aborrecidos lançamentos que o mercadão lança insistentemente pela TV, acho graça da discussão implausível de então da minha mãe, que era uma dona de casa que nunca teve pendores intelectuais, sobre as proparoxítonas e o disco do Chico.
E morro de saudades.