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Em um Brasil que acabou de se tornar independente, um erudito do porte de José Ribeiro de Souza Fontes dizia: “Em todas as classes sociais encontra o império de Santa Cruz filhos que podem ser postos em paralelo com esses vultos que, no velho e novo mundo, têm enobrecido suas pátrias”. A noção liberal que valorizava o mérito, algo extremamente cultuado pelos iluministas, não deixava esfriar, para Joaquim Manoel de Macedo, autor do clássico A moreninha, “o coração o desânimo pela sua condição de pobre e desconhecido”.
Essas palavras foram proclamadas em pleno Império do Brasil, em uma corte que vigorava a escravidão como o principal motor da economia. Delas emanavam a meritocracia, uma ideia que ainda é predominante em muitos círculos sociais, inclusive, sendo possível ouvi-la em cultos religiosos, principalmente os que pregam a teologia da prosperidade. E é justamente essa ideologia que a série brasileira 3%, já em sua segunda temporada, traz para a discussão.
Philip Dick, um dos maiores escritores de ficção científica, acreditava que as ilusões eletrônicas eram mais convincentes que a realidade concreta. Talvez seja por esse motivo que presenciamos um êxodo do mundo real para o virtual. Este é muito mais atraente, como afirma Jane Mcgonigal. Contudo, a ilusão sempre foi mais atrativa que o real. Não é uma invenção do mundo cibernético.
Karl Marx dizia que “É evidente por si mesmo que ‘espectros', ‘laços’, ‘ser supremo', ‘conceitos', ‘escrúpulos’, são simplesmente a expressão espiritual idealista, a representação aparente do indivíduo isolado, a representação de grilhões e limites muito empíricos dentro dos quais se movem o modo de produção da vida e a forma de troca conectada a ele”. A série 3% poderia ter ficado muito mais interessante se a Causa (movimento que propõe a derrubada do modo tradicional pelo qual se enxerga a vida) tivesse ganhado justamente no momento em que se descobre que a ilusão que dá sentido a vida era justamente a razão de todo o sofrimento. Mas seria marxista demais, não?
Ao em vez disso, preferiu-se optar por uma questão mais reacionária que lembra os governos petistas. A protagonista, Michele, descobre toda a verdade por trás da ilusão meritocrata, mas não põe fim ao processo, ao sistema, e o mantém distribuindo uma pequena parte da tecnologia do Maralto (onde habitam os privilegiados) entre os habitantes do Continente (onde moram os desprivilegiados), para que estes tenham um acesso – rudimentar – à riqueza, como os peixes que vivem na cola dos tubarões para abocanharem as migalhas que deixam.
3% é, sem dúvida, a série que melhor retrata o Brasil. Tanto em termos sociais quanto políticos. Mas as esquerdas só se manifestaram em “O Mecanismo” quando a Netflix resolveu compartilhar a narrativa golpista. Alguns seguidores, mais contumazes, do ex-presidente Lula, resolveram até mesmo boicotar a plataforma de streaming. Mas porque não refletiram e elogiaram a série 3%? Mais famosa mundialmente, inclusive, que “O mecanismo”.
Essa esquerda parece ter cansado de pensar no sistema, na luta de classes, na lógica de funcionamento da estrutura, passando a se dedicar apenas a Lula e seu legado. Sei que Lula é a única liderança capaz de impedir o avanço da direita, o que mostra o motivo pelo qual a mídia, atrelada às corporações liberais, fez dele o inimigo público número um. Mas, contudo, mostra, também, que o povo não está pronto para ver uma transformação radical em sua vida. Ele espera apenas que um sistema que foi feito para não funcionar funcione.
Esse fenômeno foi encenado no seriado quando uma multidão sedenta se revolta contra o sistema no momento em que ele começou a não funcionar. Porque iludida e convencida estava de sua eficácia, por ser ele o único caminho tangível para melhorar a vida agonizante. Por outro lado, uma multidão sedenta se uniu para linchar Fernando, um personagem que vive no interstício, que denuncia o Processo (sistema que promove uma espécie de concurso para selecionar apenas os que “merecem”).
Não é um seriado revolucionário, definitivamente, mas é muito mais radical que o Black Mirror, aclamado por diversos setores da esquerda. Na série inglesa não há, em nenhum episódio, uma proposta de mudança, antisistêmica. Não há rebeldes, muito menos ideologias revolucionárias capazes de conduzir os explorados a derrubada do poder.
Em 3% temos a Causa, um grupo que quer destruir o sistema, e como este funciona. Embora não possua uma ideologia revolucionária que possa ministrar a sociedade após a transformação e por ter integrantes impulsionados muito mais por motivos particulares que por uma teoria revolucionária, o seriado apresenta a ação dos inconformados organizados para o fim de uma sociedade exploradora.
Os capítulos são nomeados magistralmente. Objetos fundamentais que causam uma transformação no enredo, como um lampião, sapos e um colar, denominam cada passo da trama. O capricho do enredo e a série de reviravoltas contidas nele, compensam a atuação de alguns atores que deixam a desejar.
Mas já que a esquerda não se preocupou em criticar a série, a direita se manifestou. A revista Veja já deu a sua posição, afirmando que o seriado peca por ter falas pobres e excesso de palavrões. Aspecto que realmente não percebi em demasia, já que os palavrões são dosados perfeitamente e ditos na hora certa, exatamente como funcionam cotidianamente. Mas a direita irá encontrar uma maneira de denegrir moralmente aquilo que critica o seu âmago, de forma clara e objetiva. Nenhuma manifestação que denuncie a ilusão criada pela ideologia da meritocracia, chave do sistema liberal, pode sair ilesa.
Algumas questões a desejar
Lógico que há um exagero na série, pois não existe e não existirá uma sociedade em que 3% são ricos e todo o resto pobre. Haverá sempre os intermediários e os intermediários dos intermediários, que servirão de linha de frente dos valores dominantes da sociedade tradicional. Mas o fato é que uma minoria exerce o poder real e concentra grande parte da riqueza em um sistema ideológico que visa manter sua dominação, e uma maioria explorada, sem acesso aos instrumentos emancipatórios capazes de transformar a sua realidade.
Há apenas uma ilusão na série, a de que não há uma questão de berço e conchavos para se conquistar o que o sistema oferece. Como no conto de Balzac, sabemos que a meritocracia na realidade está muito mais atrelada a questão de classe, e dos mecanismos a sua disposição para alcançar o status de “bem sucedido” que uma questão pura e simplesmente de mérito. Por isso, mesmo a crítica ao sistema deve ser criticada, principalmente quando ela faz parte da mega indústria cultural. E 3% é um ótimo exercício para isso.
1 FONTES, Dr. José Ribeiro de Sousa. Relatório do segundo secretário. R.IHGB, Rio de Janeiro, Tomo XXXIII, Garnier, pp. 419-437, 1870. p. 432. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/0B_G9pg7CxKSsc29KSlpIVGQzOUE/view. Acesso em: 27 de dezembro de 2017.
2 MACEDO, Joaquim Manoel de. Discurso do orador. R.IHGB, Rio de Janeiro, 2 ed. Tomo XXI, Imprensa Nacional, 1930 (1858). p. 492. Disponível em http://www.ihgb.org.br/rihgb/rihgb1858t0021c.pdf. Acesso em: 20 de agosto de 2011.
3 MCGONIGAL, Jane. A realidade em jogo. Rio de Janeiro: Best Seller, 2012.
4 MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 58
5 https://veja.abril.com.br/blog/isabela-boscov/3-por-cento/