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“Eu não nasci rodeada de livros e, sim, rodeada de palavras”. Com essa frase, a multipremiada escritora Conceição Evaristo revela a origem de seu encantamento pela matéria-prima principal do ofício que a consagrou. Sua trajetória de vida merecia ser contada em livro. Ela, que hoje é mestre e doutora em Letras, nasceu em uma família de mulheres negras faxineiras, empregadas domésticas e cozinheiras, em uma favela da Zona Sul de Belo Horizonte, Minas Gerais. Precisou conciliar os estudos com o trabalho como empregada doméstica até terminar o curso normal em 1971, quando tinha 25 anos.
Depois, se mudou para o Rio de Janeiro, de onde extravasou sua vocação literária, se dedicando a escrever poesias, romances, contos e ensaios, além de participar, por meio de sua escrita, de inúmeros movimentos sociais. Parte de sua produção está em Cadernos Negros, periódico do Grupo Quilombhoje, de São Paulo. Escreveu, entre outros, Olhos d’água, Ponciá Vicêncio e Becos da memória. Ela foi uma das convidadas da 9ª edição da Tarrafa Literária, evento que reúne escritores nacionais e internacionais em Santos, no litoral de São Paulo.
Fórum – Qual a importância da literatura oral em sua obra e como foi sua iniciação no universo dos livros e da escrita?
Conceição Evaristo – Eu não nasci rodeada de livros e, sim, rodeada de palavras. Desde pequena, em minha casa, se mantinha o hábito da contação de histórias, inclusive, as de tradição africana. Além disso, sou mineira e temos como característica contar “causos”. Portanto, cresci escutando histórias. Qualquer situação cotidiana se transformava em história, era criado um enredo. Por pura intuição, minha mãe promovia oficinas de palavras, principalmente em função do pouco material impresso que chegava em nossas mãos. Pegávamos as revistas ou jornais que apareciam e analisávamos as figuras, despertávamos a imaginação. Essa didática da oralidade criou um encantamento pelas palavras, ao mesmo tempo que existia o desejo pela literatura. Estudei em uma boa escola pública em Belo Horizonte, o que também ajudou a desenvolver meu gosto pelo texto escrito.
Fórum – Você disse certa vez a seguinte frase: “Minha escrita é contaminada pela condição de mulher negra”. Pode aprofundar isso?
Conceição Evaristo – Essa escrita vem muito como resposta a grande pergunta que se faz: Existe um texto negro?, da mesma forma que se indaga se existe um texto feminino. Na verdade, tudo que eu escrevo, romances, poemas, contos e também ensaios, é profundamente marcado pela condição de mulher negra. Não há como me desvencilhar disso, mesmo quando invento uma história. Dizem que o que marca a autoria negra é o ponto de vista do texto. No entanto, o ponto de vista não é matéria espontânea. Há um sujeito autoral responsável por esse ponto de vista. O sujeito que vive em uma sociedade racista, classista e machista. E essa herança histórica sempre está presente na minha escrita. Antes, até sem querer. Mas, de alguns anos para cá, de forma proposital, consequência de um projeto literário.
Fórum – Você encontra intersecções entre racismo, sexismo e capitalismo?
Conceição Evaristo – Sim, sem dúvida. A sociedade capitalista tem inúmeros elementos que propiciam o racismo e o sexismo. E isso tem explicação, pois o que move o sistema é a força da produção. E, nesse cenário, a mulher produz menos do que o homem. Essa é a dinâmica do capitalismo. Contudo, isso não quer dizer que não haja racismo no socialismo. Mas é claro que o capitalismo está menos propenso a uma revisão dessa questão.
Fórum – As mulheres negras são naturalmente fortes ou precisam se fazer fortes, porque o Estado sempre foi omisso em relação às suas questões?
Conceição Evaristo – Eu tenho pensado muito nisso. Mas me pergunto: quem imputa essa fortaleza às mulheres negras? No processo de escravização, o corpo do negro era cercado de estereótipos. Por exemplo, diziam que o negro de perna fina era indicado para determinado tipo de trabalho. Ou seja, as características do corpo determinavam a potência do trabalho. Essa fortaleza nos animaliza, pois não leva em consideração as questões emocionais. E isso perdura no imaginário das pessoas. Vou contar um caso: há 15 anos, a Fundação Oswaldo Cruz desenvolveu uma pesquisa, que concluiu que as mulheres negras recebem doses menores de anestesia, porque, supostamente, suportam mais a dor. Essa fortaleza não nos interessa, não reconhece a verdadeira condição da mulher negra. O povo negro é forte, sim. Caso contrário, não teria sobrevivido a tudo que passou. Mas essa força nós buscamos a partir de nós mesmos.
Fórum – A intolerância ao diferente é uma característica inata ou uma espécie de construção social?
Conceição Evaristo – Acredito que seja uma construção social. Gosto muito de uma frase do Nelson Mandela: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, ou por sua origem, ou sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se elas aprendem a odiar, podem der ensinadas a amar, pois o amor chega mais naturalmente ao coração humano do que o seu oposto. A bondade humana é uma chama que pode ser oculta, jamais extinta”. Não gosto do termo intolerância, vejo isso como uma dificuldade de conviver com o outro, mas prefiro acreditar que a crueldade não é inata e, sim, adquirida.
Fórum – Para você, as redes sociais assumem um papel importante como fórum de debate sobre as questões referentes aos negros?
Conceição Evaristo – Creio que as redes sociais tenham um papel importantíssimo nesse debate. Na pior das hipóteses fez com que o racista saísse do armário. Não acompanho muito, porque vejo lá muitas discussões que não me interessam mais. Contudo, observo que há uma grande parcela de mulheres negras, especialmente as jovens, que debate essas questões com intensidade. As redes sociais têm um papel positivo nisso.
Foto: EBC