O Torto, um local de resistência política e cultural de Santos, fecha as suas portas

Frequentado por boa parte da esquerda da região, abrigava também artistas e atores como Alessandra Negrini, Dalton Vigh, o fotógrafo Araquém Alcântara e o crítico Rubens Ewald Filho. O local foi também o ponto de partida da banda Charlie Brown Jr.

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Frequentado por boa parte da esquerda da região, abrigava também artistas e atores como Alessandra Negrini, Dalton Vigh, o fotógrafo Araquém Alcântara e o crítico Rubens Ewald Filho. O local foi também o ponto de partida da banda Charlie Brown Jr. Por Julinho Bittencourt Neste domingo (17), fecha as suas portas o bravo e simpático boteco de Santos (SP) conhecido como Torto. O nome em si, de tamanha ironia, brinca com o local onde fica, o mais entortado de um dos muitos prédios tortos da orla do balneário. Construídos em terreno aterrado, de forma irregular, acabaram sendo uma das maiores características da cidade que, até meados da década de 80, servia de esticada de fim de semana para a classe média paulistana. O bar em si, um local pequeno, apertado e enfumaçado, abriu as suas portas em 1984 com, entre outras atrações, boa música e uma linda exposição do fotógrafo Araquém Alcântara e, rapidamente, se transformou numa referência da cidade, saltando para além dela. Tocaram por lá, além de artistas reconhecidos da cidade, gente como Arrigo Barnabé, Eliete Negreiros, Jorge Mautner, o trombonista Bocato entre muitos outros. Um dos trunfos do local foi ser o ponto de partida dos músicos da banda Charlie Brown Jr. Qualquer um que pegar um taxi em Santos e pedir para ir ao Torto não precisa dar o endereço. E isso deve perdurar ainda por muitos e muitos anos, tal o seu reconhecimento. Inaugurado por jovens músicos que nunca poderiam imaginar o sucesso que o local faria, tampouco a sua longevidade, o Torto resistiu todos esses anos a modismos musicais, tendências e crises com a grande arma que sempre teve, a boa música. Além dela, o bar se notabilizou também por ser um local aberto, “friendly”, como se diz hoje, num tempo em que a comunidade LGBT era relegada a guetos. Em certa época, um garçom enorme, enrolado em roupas indianas de seda, recebia as pessoas com sorriso largo, dando piruetas com a sua bandeja. Frequentado por uma fauna que incluía boa parte da esquerda da região, abrigava também malucos de toda a sorte, artistas e atores – Alessandra Negrini e Dalton Vigh, por exemplo, além do crítico Rubens Ewald Filho, que vez ou outra passava por lá. No começo da década de 90, com as eleições dos governos do PT de Telma de Souza e seu sucessor, David Capistrano Filho, o boteco renasceu junto com a cidade. A histórica intervenção no Hospital Psiquiátrico Anchieta e o consequente engajamento da prefeitura na luta antimanicomial, levou para a cidade e, é óbvio, para dentro do Torto, técnicos, terapeutas ocupacionais e pacientes, em plena convivência e harmonia. O Torto era – e alguns poucos coxinhas camuflados de então se queixavam – um bunker de novas e ousadas ideias, incluindo aí as eleitorais. Nas antológicas campanhas de Lula à presidência, o local virava um comitê eleitoral. Festas de campanha, músicos com camisetas e bandeiras, jingles eleitorais e panfletagens eram realizadas por lá sem o menor pudor. O Torto fecha neste domingo. Assim mesmo, sem mais, porque alguém que herdou um imóvel quer e pronto. Não importa se, ao longo de 33 anos, foi construída uma história cheia de idas e vindas, paixões, alegrias e dissabores. Ele quer e acabou. Não faz mal se lá dentro foi escrita uma boa parte da cultura e, sobretudo, da música de uma das regiões mais profícuas e produtivas do país. É dele, ele pode e pronto. Na sua última semana, uma romaria de gente de todas as idades passou pelo bar para se despedir. Cenas comoventes com pessoas que não se viam há anos celebraram ali, naquele momento, seus melhores anos, ideias e sonhos. Todos os músicos que um dia se apresentaram lá e puderam ser encontrados foram tocar para se despedir. A internet na região quebrou enternecida. O Torto, no entanto, esse nunca mais, até porque, com um nome desses não teria sentido em nenhuma outra parte não fosse naquele estranho edifício, que só não foi interditado nos idos dos anos 70 sabe-se lá porquê. Essa coisa de doidos que se dane e vá formar em outra parte ou, de preferência, em parte alguma. O proprietário venceu pela abominável denúncia vazia. Não há neste país autoridade que pense, questione e altere o papel social das propriedades. Um dia, quando em algum tribunal do juízo final que também não existe, forem prestar contas do que fizeram às almas das cidades, diversos deles vão estar por lá. Munidos de seus blocos de anotações, planilhas de Excel, contadores e recibos, vão explicar ao capeta que tudo foi exterminado porque tinha que ser feito. Números não mentem. Neste dia, quietos e com o sorriso largo, nós todos, palhaços, malabaristas, músicos, artistas, público e plateia seguiremos dançando noite adentro com as únicas coisas que nunca conseguiram e, definitivamente, jamais conseguirão nos arrancar. Os nossos sonhos. Foto: Reprodução/Facebook