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Não dá para ouvir Chico como quem ouve sertanejo universitário. Como não dá para ler Machado como quem lê autoajuda.
Por Heitor Ferraz Mello
O cara se acha ao máximo, tem ciúmes dele mesmo quando, no espelho, se imagina abraçado com a sua amada. Se acha o melhor poeta do mundo, comparável a Shakespeare, ou melhor, imitando-o na cara dura. Todo o lugar-comum lírico, o convencional, até mesmo o belo tradicional, comparecem na canção, mas com grande maestria. É a mão do artista embaralhando as cartas.
Além disso, ele diz que larga mulher e filhos para ficar com a outra. Mas quem disse que ela vai ficar com ele? Quando dizem que "não sou essa mulher, não me reconheço como essa musa", pode-se argumentar que a moça da canção também pode pensar assim. Por que não? Num poeta consciente de sua linguagem, e mais, machadiano, um personagem desses chega totalmente envenenado aos ouvidos desatentos dos ouvintes.
Ouvir a canção achando que é uma mera cantada machista faz sentido, mas observando que ela chega com todo exagero lírico - tanto melódico como interpretativo - que é de se desconfiar e não de se fiar nessa voz. Chico não é um compositor confessional: pode até incluir experiências pessoais nas canções, mas seus personagens escorregam facilmente da mão, como muitos dos brasileiros de carne e osso, com aparente discurso esclarecido e até mesmo lírico (tipo o que Machado fez ao criar o Bentinho).
E, pela letra de Caravanas, outra canção do mesmo álbum, dá para perceber que ele está justamente tocando nesse discurso obscuro de certa classe nacional, que conhecemos muito bem. Falar dessas canções apenas com uma audição superficial é tomar uma rasteira do compositor e ficcionista. Não dá para ouvir Chico como quem ouve sertanejo universitário. Como não dá para ler Machado como quem lê autoajuda.
Foto: Reprodução/Facebook