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A grande novidade mesmo de “Que horas ela volta?” é Jéssica. Ela é o presente. Ela é a realidade de milhões de brasileiras e brasileiros que hoje querem uma vida melhor, mais digna e mais cidadã
Por Wagner Iglecias*
Fui assistir neste final de semana ao filme “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert, indicado pelo Brasil para concorrer ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira em 2016. Não sei se por ignorância cinéfila ou falta de sensibilidade, mas a obra, tão comentada nos últimos dias, não me surpreendeu. Relata o cotidiano óbvio das relações entre uma família de classe média alta e seus empregados domésticos. Tem o mérito de focar a narrativa na empregada Val (personagem de Regina Casé), dando-lhe o protagonismo de, a partir de seu olhar, desnudar aquilo que todo mundo sabe muito bem: o quão naturalizada é a relação de opressão entre patrões e empregados domésticos e o quão naturalizada é a invisibilidade destes trabalhadores na nossa sociedade.
Os patrões (um casal aparentemente mal-resolvido, que apenas se tolera, e seu filho pós-adolescente) passam o filme todo sem sequer levantar a bunda da cadeira para retirar o prato da mesa após as refeições. Tudo cabe a Val, que o faz com comiseração, profundo senso de responsabilidade e quase agradecimento, tamanho o grau de internalização que tem acerca de seu papel subalterno naquela relação. A ela não cabe ter dores, aspirações ou aflições. Ou se as têm, jamais cabe a ela externa-las. A ela cabe servir. E só.
O problema todo começa quando Jéssica (personagem de Camila Márdila), sua filha, resolve vir do interior de Pernambuco para São Paulo para prestar o vestibular. E logo o da Fuvest. À primeira reação de espanto dos donos da casa (com direito a pai e filho aproximarem-se dela quase que como dois machos a querer observar de perto uma fêmea de outra espécie) sucede-se o choque de visões de mundo entre mãe e filha, entre Val e Jéssica.
Val simboliza a moça nordestina que se picou pro Sul Maravilha nos anos 1970 e 1980 atrás de um emprego qualquer para escapar da fome, da seca e da cerca do latifúndio. Jéssica não. Já retrata as novas gerações de nordestinos, nascidos a partir da década de 1990 e que tiveram acesso a melhores condições de vida nos últimos dez, doze anos. Almeja ser arquiteta e simplesmente não compreende a lógica que leva a mãe a subordinar-se tanto a patrões que lhe pagam um salário risível que jamais lhe permitiu ter a sua própria casa após décadas de trabalho duro.
Sobre o núcleo de personagens que simboliza os patrões, nada de novo: um artista plástico mediano e acomodado, herdeiro da fortuna de um avô; uma executiva de nariz empinado, ciosa de sua imagem pública junto aos pares; e um pós-adolescente comum, que parece ter mais sentimento pela empregada do que pela própria mãe, que fracassa no vestibular e cuja ação mais arrojada na vida até então é o ato transgressor e revolucionário de... estar começando a fumar maconha.
A grande novidade mesmo de “Que horas ela volta?” é Jéssica. Afinal, o perfil um tanto esquemático, mas verdadeiro, de uma família de classe média alta em suas crises existenciais burguesas e o perfil de uma empregada doméstica resignada com o destino é o que sempre tivemos neste país, há décadas. Isso é o passado. Um passado que teima em continuar existindo. Jéssica, não. Ela é o presente. Ela é a realidade de milhões de brasileiras e brasileiros que hoje querem uma vida melhor, mais digna e mais cidadã. O que “Que horas ela volta?” não consegue anunciar, como de resto não estamos conseguindo nenhum de nós, é o futuro. O país que virá por aí nos próximos dez, quinze, vinte anos, após todas as mudanças sociais promovidas na última década e toda a forte reação a elas que se observa neste momento.
* Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP
Foto de capa: Divulgação