Escrito en
CULTURA
el
Não são só as mais variadas empresas, multinacionais, frigoríficos, e igrejas neopentecostais que veem entre os migrantes uma oportunidade de expansão de novo mercado. A indústria farmacêutica, os laboratórios de pesquisa e outros dispositivos de intervenção e pesquisa no domínio da saúde mental também estão atentos a esse nicho
Por Ana Gebrim
Na mesma velocidade em que desembarcam no Brasil, a cada dia, novas populações em busca de asilo, também novas práticas e dispositivos de acolhimento e controle são desenvolvidos, em contrapartida. Obviamente, na área da saúde mental não seria diferente, constituindo um campo fértil para a proliferação de dispositivos de gestão dos precários.
Diante de novos conglomerados de recém-chegados, não são só as mais variadas empresas, multinacionais, frigoríficos, e igrejas neopentecostais veem aí uma oportunidade de expansão de novo mercado – supostamente apto a mais profunda exploração. Começam a dar sinais também a indústria farmacêutica, os laboratórios de pesquisa, entre outros dispositivos de intervenção e pesquisa no domínio da saúde mental.
Revestidos por diagnósticos psiquiátricos cada vez mais popularizados, tais como o controverso Estresse Pós Traumático (TEPT), práticas de saúde mental desenvolvem novos modelos de gestão do sofrimento. No Brasil, as psicanalistas Felícia Knobloch e Miriam Debieux têm sido umas das primeiras a denunciar a ampla proliferação de novas tecnologias terapêuticas para essa população que têm como consequência, mais uma vez, a patologização das experiências humanas. Eis o caso das migrações, sobretudo das consideradas migrações forçadas, que carregam em muitas de suas trajetórias experiências limite, tais como a guerra, ou situações de violência extrema.
Campo quase virgem para a colonização, as experiências de vida de imigrantes e refugiados recém chegados ao Brasil, portanto, parecem tornar-se, para alguns, tubos de ensaio de práticas de superexposição ao trauma, medicação, e eletrochoque. E se de um lado pesquisadores e clínicos procuram expandir suas intervenções no novo mercado, também não cessam de inventar novas categorias diagnósticas. A mais nova delas parece ser a inventada pelo psiquiatra espanhol Joseba Achotegui, que toma não só de empréstimo uma das obras mais emblemáticas da humanidade, como pretende patologizar aquilo que da experiência subjetiva parece ser o mais extraordinário. Síndrome de Ulisses é o chamado psicodiagnóstico para uma sintomatologia que abarca elementos como sentimento de solidão, tristeza, ambiguidades no processo migratório, culpa, e reações de insônia, estresse, dores de cabeça, fadiga.
Diante disso, como deixar de interrogar: a que essas tecnologias psicoterapêuticas vêm responder? Qual a produção de subjetividade em jogo? Se há mais de um século Freud sugeriu a existência de benefícios secundários da doença e, portanto, a importância de se escutar os sintomas – na direção de um tratamento que tenha como elemento central processos de elaboração psíquica – hoje, nessas práticas referidas, a concepção parece ser outra. Vítima por excelência das condições adversas a que foi submetido, o sujeito passivo em questão deixa de ter seu sintoma interrogado. E o desdobramento direto não é nada menos senão um casamento bastante cômodo entre gestão dos precários e práticas hegemônicas do capital. Novamente, intervenções em saúde mental que pretendem a alienação do sujeito de sua experiência.
Vivemos em mundo que, desde o ano passado, segundo pesquisa, produz em média 42 mil pessoas deslocadas de suas casas por dia, dentre elas grande parte tendo vivido extremas violências. O que dizer, portanto, dessa realidade? Se quisermos produzir algum afeito de escuta para além do psicodiagnóstico e do silenciamento dos sintomas, a experiência psíquica da imigração e do refúgio devem ser escutados imersos no contexto em que são produzidos.
Foto: Pixabay