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O que a torna a série única e especial é a introdução, frequentemente sub-reptícia, de elementos de crítica social, a tal ponto que qualquer episódio pode servir como base para um debate político. No mundo pós-apocalíptico da série, os únicos comportamentos inaceitáveis são os que viram humanos contra humanos
Por Ricardo Coelho, no Esquerda.net
A premissa da série “The Walking Dead”, baseada na famosa e premiada novela gráfica de Robert Kirkman, é igual a tantas outras histórias de zumbis: devido a uma doença que torna pessoas em mortos-vivos que se alimentam da carne dos vivos, a sociedade como a conhecemos ruiu e um pequeno grupo de sobreviventes faz o que pode para se aguentar. Seguindo a tradição de filmes de zumbis, a série é extremamente gráfica e não é aconselhável ser vista por quem desmaia ao ver uma gota de sangue. O que a torna única e especial não é tanto o fato de quebrar com a tradição dos filmes de zumbis de combinar terror com comédia mas antes é introdução, frequentemente sub-reptícia, de elementos de crítica social, a tal ponto que me atrevo a dizer que qualquer episódio pode servir como base para um debate político. O último episódio foi particularmente ilustrativo desta tendência.
Antes de mais, um aviso amigo: este texto contém revelações sobre a série. A quem ainda não a começou a ver, aconselho que a veja desde o início e volte a este texto posteriormente. Está dado o aviso.
A série que tem posto meio mundo agarrado à cadeira já nos habituou à desconstrução de estereótipos e preconceitos. Nos episódios iniciais, as divisões de gênero estão ainda muito vincadas (veja-se a cena em que as mulheres lavam a roupa num riacho, enquanto o violento marido de uma delas observa) e as divisões raciais espreitam de vários lados (veja-se o exemplo do detestável redneck racista Merle). À medida que a história avança, contudo, a intolerância é constantemente punida, assim como o autoritarismo. A mensagem torna-se cada vez mais evidente: para sobreviver, um grupo tem de ser unido, não havendo espaço para a falta de solidariedade ou a dominação.
Repito, os elementos de crítica social são introduzidos frequentemente de forma subreptícia (uma exceção óbvia a esta regra é o destronamento do ditador paternalista conhecido como “o governador”). O resultado é a naturalização de comportamentos frequentemente condenados numa sociedade intolerante. Por exemplo, pode facilmente passar ao lado de muitos fãs o fato de o bebê do grupo (filha de Lori, que morreu durante o parto) ser carregado ao colo e cuidado por homens e que o papel de “mãe” seja atribuído a Tyreese, um homem negro corpulento que normalmente associaríamos pelo físico ao papel de durão. Não passará ao lado a cena em que um homem está preocupado com o destino do seu parceiro, receando que tenha sido apanhado pelos zumbis, para depois descobrirmos que os dois homens são namorados, mas o romântico reencontro é feito com tal realismo que nada parece estranho. No mundo pós-apocalíptico da série, os únicos comportamentos inaceitáveis são os que viram humanos contra humanos.
Nada disto é inédito no domínio da fantasia e ficção científica. Hoje quando alguém pensa na série Star Trek (a série original, dos anos 60) pensa certamente nas orelhas pontiagudas do Mr. Spock ou no teletransporte operado pelo Scotty. Mas a série foi também inovadora a outros níveis. No meio da polêmica sobre o apartheid em que a comunidade negra vivia nos EUA, houve um produtor que teve a ousadia de não só introduzir pessoas não brancas em papéis de destaque como também de exibir na TV o primeiro beijo inter-racial. Criar um mundo fantástico é uma forma de quebrar barreiras e isso não passou batido por Karl Marx, que foi buscar os seus metafóricos espectros, vampiros e monstros às obras de autores como Bram Stocker e Mary Shelley. Muitos outros exemplos modernos de cruzamento entre mensagem política e ficção existem, desde o feminismo da Buffy até ao pacifismo da Battlestar Gallactica mas voltemos ao último episódio de “The Walking Dead”.
Depois de vaguear durante anos a enfrentar todo o tipo de dificuldades, o grupo de sobreviventes encontra um refúgio na comunidade de Alexandria. Rodeada por muros impenetráveis, a localidade foi criada como uma eco-aldeia para os ricos, mas foi entretanto ocupada por sobreviventes do apocalipse zumbi, que viram nela um refúgio autossuficiente. Depois de termos conhecido a comunidade, liderada pela ex-congressista Deanna, sabemos que funciona de uma forma democrática, com toda a gente a contribuir para o bem comum na medida das suas possibilidades. Depois de ter distribuído empregos pelos novos residentes, Deanna afirma: “Parece que, afinal, os comunistas ganharam”. Não sabemos ainda como vai acabar a aventura em Alexandria (seguindo a tradição da série, provavelmente acabará mal) mas a cena já serviu para mostrar a importância de democratizar o acesso a modos de vida ecológicos e combater o “eco-chic”.
Não sei se o eco-socialista Michael Löwy já viu este episódio, mas certamente ficará satisfeito de ver uma obra de ficção a mostrar o valor do “comunismo solar” que propõe como alternativa ao capitalismo morto-vivo. Se no filme “Terra dos Mortos” o grão-mestre dos filmes de zumbis George Romero nos mostrou a importância de derrubar os muros que separam capitalistas de proletários, a série “The Walking Dead” dá um passo em frente e mostra a importância de viver numa sociedade sustentável, social e ambientalmente.
Esperemos que não seja necessário termos um apocalipse zumbi para caminharmos em direção ao comunismo solar. A alternativa é um futuro de crescente conflitualidade, exploração e destruição ambiental. Afinal, não é preciso termos zumbis a querer comer-nos para que a máxima “ecosocialismo ou morte” faça sentido. Sobretudo quando consideramos que já temos capitalistas a comer-nos todos os dias.