“É preciso ensinar o respeito necessário ao candomblé”

Em entrevista à jornalista Estela Marques, Makota Valdina, integrante do Conselho Estadual de Cultura da Bahia, fala sobre racismo, política, intolerância religiosa e violência

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Em entrevista à jornalista Estela Marques, Makota Valdina, integrante do Conselho Estadual de Cultura da Bahia, fala sobre racismo, política, intolerância religiosa e violência

Por Estela Marques, no Portal do CEC  

[caption id="attachment_29387" align="alignleft" width="300"] Makota Valdina (Foto: Reprodução / Portal do CEC)[/caption]

Valdina de Oliveira Pinto. Mulher, negra, guerreira e vencedora. Numa sociedade repleta de preconceitos e com a constante luta pela igualdade de direitos, é sempre sinônimo de aprendizado sentar-se ao lado de alguém que, aos 69 anos, reúne as quatro características. E os detalhes da sua batalha contra o preconceito são descritos numa autobiografia que deverá se chamar “Meu caminhar, meu viver”. O lançamento está previsto para novembro, mês da consciência negra, e conta histórias da sua infância no bairro do Engenho Velho da Federação e dos caminhos que levaram até se tornar Makota Valdina, como é conhecida hoje.

Makota é membro do Conselho Estadual de Cultura da Bahia (CEC). Seu lugar de fala está atrelado às críticas diante da negligência à memória cultural do povo brasileiro e da pouca valorização do ensino da cultura afro-brasileira e africana. Em uma entrevista à repórter Estela Marques, do Portal do CEC, a conselheira analisa os 10 anos do PT no poder, diz ter sido vítima de racismo na igreja católica e compartilha as experiências vividas desde a meninice na periferia da capital baiana.

Leia a íntegra da entrevista com Makota Valdina: 

O que já podemos adiantar do seu livro?

Bem, é uma autobiografia na qual eu conto minha história, a partir da minha infância no Engenho Velho da Federação. O nome provisório é “Meu caminhar, meu viver”. As pessoas viviam me cobrando isso, mas tomei a decisão de escrever há dois anos, quando meu irmão completou 70 anos. Percebi que havia chegado o momento de escrever o livro e decidi também que o lançamento seria em novembro, pois é quando todos estão focados na temática da consciência negra.

E como a Makota Valdina se define?

(risos) Eu sou uma mulher, negra, guerreira. Sou aposentada, educadora, sou de candomblé, alguém que gosta e luta por justiça em todos os sentidos. Luto pelos direitos humanos que todos os seres humanos têm, independentemente de raça, religião ou opções. Eu sou uma lutadora e uma vencedora.

Por que a senhora se considera uma vencedora?

Uma vencedora porque apesar de todos os “nãos” que tenho recebido desta sociedade racista e injusta, superei e dei a volta por cima. Vim de uma família pobre, de pais semianalfabetos. Vim de um bairro que era uma área rural, mas fui criada com muita dignidade. Tive muito boas lições daqueles homens, daquelas mulheres, daquelas pessoas negras e pobres, alguns até analfabetos, mas que deram seu exemplo, régua e compasso para o que sou hoje.

O que a senhora precisou fazer para chegar ao nível de makota?

A makota é como a assessora de quem lidera uma comunidade religiosa. Esse termo é utilizado nos terreiros de Angola e equivale às equedes no candomblé de ketu. Quando entrei para o candomblé, me iniciei como makota, uma pessoa que entra e se prepara, mas não incorpora, como os filhos de santos. Makota é um termo que, em nível de língua e de África, é tanto usado para homem como para mulher. Na construção dessas tradições aqui no Brasil, o termo ficou sendo utilizado mais por mulheres que exercem a função de equede.

Sua mãe era candomblecista. A senhora teve algum tipo de contato com outra religião?

Tive. Eu fui católica praticante. Fui batizada e na escola era obrigada a ir à aula de catecismo e fazer primeira comunhão. Sou a única da família que praticou a religião. Primeiro, porque quando me formei professora, religião era como uma disciplina, você tinha que ensinar. Fiz um curso de catequese por causa do meu trabalho de educadora, mas também ajudei quando estava sendo criada a igreja na comunidade do Engenho Velho de Brotas. Na década de 1970, rompi com a igreja e fui ser aquilo que tinha que ser.

O que te fez romper com a igreja e se iniciar no candomblé?

O racismo. Primeiro, a experiência que tive em 1970, quando viajei da Bahia para fora do Brasil, na época que estava aquela luta nos Estados Unidos por questão racial. Comecei ali a ouvir sobre racismo. Voltei com informações, com visão mais ampla. E eu tinha a formação como professora, em catequista, da mesma maneira que as minhas colegas. Aconteciam alguns encontros e passei a observar a discriminação em relação às catequistas negras e às não negras. Uma vez estávamos numa discussão e me vi defendendo o candomblé por ter ouvido que era um bando de bêbado, que as pessoas se embriagavam, ouviam toque de tambor e por isso recebiam orixás, recebiam santos. Aquilo não era verdade. Desde criança vivi às voltas do candomblé. Minha mãe não bebia, não fumava e várias vezes a vi incorporada pelo orixá, pelo caboclo, sem estar bêbada, sem estar fumando e sem ter toque de atabaque. A partir dali, eu disse: “Não vou ser mais católica”. Rompi com a igreja.

O papa veio ao Brasil e deu algumas declarações que soaram liberais. Como a senhora avalia sua presença e a reação das pessoas?

A igreja estava mais do que na hora de ter um papa como esse e eu espero que Deus o proteja dos católicos que são conservadores e não estão vendo o mundo como a gente vive hoje. Ele pode ter inimigos próximos, gente que não comunga com a maneira que ele está fazendo. Acho que o mundo precisa de lideranças religiosas como o papa.

Você é makota no terreiro Tanuri Jussara, no Engenho Velho da Federação. Qual sua relação com a comunidade?

A melhor possível, porque desde criança vivi em comunidade. Talvez ali, hoje, nem possa mais ser chamado assim, mas eu me lembro daquele bairro como comunidade mesmo. A gente compartilhava, fazia, criava e construía coisas juntos. Eu contribuí para a primeira associação de moradores ainda jovem e fui a primeira presidente mulher da associação. Hoje, talvez, eu não tenha tanta atividade como já tive. Hoje, o bairro inchou. Tem muita gente de fora, mas entre as pessoas antigas, sou muito conhecida. Quando tem alguma coisa lá, sempre buscam a nossa família. Nasci, fui criada e vivo lá. E é o meu lugar.

O que a senhora vê que mudou nesses 70 anos no bairro?

Mudou muito. O que mais destaca é esse inchaço. O bairro inchou, tem muita gente que não é filho dali, que não tem um vínculo com o lugar. A violência não surgiu de lá, mas veio de fora. O que a gente fazia antes com mais facilidade, hoje não é tão fácil. Você não encontra tanta resposta como antes. Já não tem a segurança como tinha antes, quando dormíamos de porta aberta e ninguém entrava. As pessoas respeitavam a privacidade alheia. Tinha muito verde, bebia água que talvez tivesse mais qualidade do que essa que tem controle de qualidade. A água jorrava, eu botava folha pra beber. Água pura. Comi muito pitu da vala. Comia muita fruta, subia em pé de árvore. Comi muita comida boa das hortas que comprávamos na hora. Isso já não existe mais.

A senhora iniciou a entrevista falando que é mulher e negra. E como é ser mulher, negra e candomblecista numa sociedade que tem a conjuntura como a nossa?

É desafiante. É difícil, mas tive uma boa referência – minha mãe – e o que sou hoje é por causa dela. Por outro lado, vivemos uma realidade em que a mulher mostra o que ela sempre foi. O chefe da família nunca foi o homem. A mulher que dá tom a uma família. Há mais abertura, estamos conquistando mais espaço, mas isso não quer dizer que a mulher bordadeira, doceira, lavadeira, não tivesse ou não fosse uma forte mulher. O desafio é enfrentar essa nossa realidade e se manter mulher. Exercer uma profissão antes masculina, mas sem abrir mão do ser mulher e ir com a sensibilidade feminina. Assim ela vai fazer a diferença.

De que modo a senhora vê essas manifestações de autoafirmação dos negros, como assumir o cabelo black power ou os traços grossos?

Tudo isso veio servir pra dar uma chamada. Começou na década de 1970, quando o Ilê Aiyê assumiu um papel fundamental nesse sentido. Os blocos afros trouxeram a questão do racismo, começaram as denúncias, foi criado o MNU [Movimento Negro Unificado], que resgata todos os movimentos e a frente negra brasileira. A partir daí começou a autoafirmação pela estética, pela aparência. Eu sempre achei bom, mas não pode se esgotar aí. Você não tem que ser lindo somente pelo que você veste ou pelo seu cabelo. Você tem que ser lindo pelo que você pensa, pela sua postura, pela sua atitude e pelos seus compromissos diante da sociedade. Aí é ser negro lindo mesmo.

O Ilê veio, abriu espaço para o movimento negro se mostrar e foi muito criticado. Hoje, não é tão criticado assim. A senhora acha que ele perdeu o caráter protestante ou que ele virou comercial?

Se eu for analisar o impacto que o Ilê causou e o que ele provocou – com as aberturas e os instrumentos que a gente se apropriou –, posso dizer que esperava muito mais dos blocos afros, e não só do Ilê. Sinto que deu uma esfriada. Por outro lado, temos a lei 10.639, que, na verdade, existe por nossa causa. Naquela época, onde tinha um grupo de negros fazendo música, ensaiando bloco, a negrada estava e a criançada também. Qual era o menino que não sabia cantar uma música do Ilê Aiyê, Malê Debalê, Araketu, Olodum? Eu alfabetizei com música de bloco afro, que era o texto que estava na cabeça do menino. Quem começou a ensinar a história da África foram os blocos afros, cantando África na rua. O compositor tinha que pesquisar aquele país, aquela situação dada no tema, pra cantar na rua. Era uma aula que se dava durante o Carnaval. Gente que não sabia, ficava sabendo.

A senhora citou a Lei 10.639, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana no sistema educacional. A senhora acha que essa lei tem sido efetiva? Ela tem gerado avanços significativos?

Não, pois a lei está aí, mas isso não garante que a coisa vai acontecer. O que acontece hoje é que você conta com muitos professores evangélicos, neopentecostais. E muitos professores evangélicos demonizam tudo que é do negro. Eles resistem e não fazem o trabalho que têm que fazer por pensarem que, por ser negro, tem que falar ou dar aula de candomblé. Falar, até que sim. Mas você não tem que dar aula ou levar ao candomblé. Candomblé é pra ser praticado no terreiro; quem quiser que vá a um. É preciso ensinar o respeito necessário ao candomblé, da mesma maneira que você respeita às outras religiões. A escola tem que fazer isso, mas não o faz por achar que tudo que é do negro é do demônio. Além disso, tem a questão dos pais, cooptados e evangélicos, que não aceitam quando a escola realiza seu trabalho e que seu filho participe de uma atividade – pedagógica –, por causa da alienação dos elementos negros. Não só os pais, mas muitos jovens. Eles negam a sua cultura, negam a sua história, negam a sua ancestralidade. Penso ser um grande mal tantos jovens negros só verem aquilo que o pastor fala. O que ele quer com isso? Pura dominação. E isso não é fé, isso não é espiritualidade. Eu luto por quilombolas, mas muitos destes já não têm identidade negra. São muitos convectivos ao evangelho; negros apenas na cor da pele. Não que eles tenham de ser de candomblé, mas não devem negar o que são, de onde vieram e a cultura do seu povo.

Como a senhora analisa o desempenho do governo federal no que diz respeito às ações de afirmação e inclusão do negro na sociedade?

Nunca os negros tiveram as oportunidades que têm tido ultimamente, embora os tempos sejam outros. Merece alguma crítica? Merece, como todo governo. O PT não é o ideal, mas nós nunca fomos tão ouvidos, nunca tivemos voz, o poder da palavra, como temos tido com o PT.  Tivemos ganhos e eu posso dar exemplo de que é diferente. Eu nunca viajei tanto ou tive tanta oportunidade para falar, sinalizar e construir coisas. Como eu, outras pessoas também. Há mudanças de quem está na base ver a coisa ser diferente, sentir que está acontecendo. Quando antes a gente viveu isso?

O que a senhora critica desses 10 anos de poder?

A gente sempre espera o diferente. O que eu critico é que o PT tem obrigação de ser diferente dos outros partidos. Não só por ser de esquerda, mas é a característica. Não sou do PT, nunca fui de partido nenhum, mas sempre fui simpática, porque realmente tinha uma prática. Acho que o PT não tem o direito de cair no mesmo erro de outros partidos que a gente chama de direita. Critico o PT hoje porque, apesar de ser mulher e achar que foi o primeiro partido que fez uma mulher, eu esperava muito mais de Dilma. Esperava que ela se impusesse mais, mas não deve ser fácil num país machista como o nosso.

E a senhora acredita que os negros têm sido contemplados nas políticas culturais da Bahia?

Tem sido, mas precisa mais. O negócio da cultura da Bahia é que aqui tem alguns vícios em relação à cultura que eu não sei quando vão dissolver. Os editais precisam melhorar, porque às vezes eles impedem alguns grupos de participarem, já que quem ganha no final é quem está preparado. Não que eu seja contra o edital. Sou a favor, inclusive, por ser contra quem consegue as coisas por meio de ‘cartas marcadas’. Mas acho que tem que ter uma forma de as pessoas que passam pela academia serem contempladas e as pessoas da comunidade também. Essas pessoas não são desonestas, só não sabem lidar com as burocracias. É preciso simplificar, buscar uma forma de atender a esse público que está aí e ainda não está sendo contemplado.

No evento de comemoração dos 10 anos de PT no poder, a senhora discursou para a presidente Dilma Rousseff e falou que Marco Feliciano não deveria estar onde está hoje. Como a senhora vê essa busca do movimento LGBT por reconhecimento e combate à homofobia?

Estão no caminho certo. É a mesma coisa pela qual nós temos que lutar, ou que os índios têm que lutar. Lutamos para a sociedade nos enxergar e dar aquilo que temos direito. Como é que um homem que vai lidar com direitos humanos pensa sobre seres humanos de forma discriminatória? Um cara desse não pode estar numa Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Deveria estar no cargo uma pessoa aberta para o que está aí. A tendência é aumentar e as famílias aceitarem. Eu não sou lésbica, mas defendo. Quem é discriminado sabe a dor que é sofrer uma discriminação, então, como vai permitir a discriminação do outro? Nós, negros, não temos o direito de permitir isso. Devemos apoiar qualquer segmento que seja discriminado porque sabemos o que é ser discriminado.

A Bahia se configura como um dos 10 estados mais violentos do Brasil. De 2001 até 2011, o índice de homicídio entre a população soteropolitana cresceu 215%. Qual sua avaliação do programa Pacto Pela Vida, do governo estadual, em cujo lançamento a senhora disse esperar que ele a fizesse “perder o medo e ódio que tem da polícia”?

Se o nome é Pacto Pela Vida, deveriam colocar [bases comunitárias] em todas as comunidades. Eu ainda continuo com ódio da polícia. Quando a vejo, remeto ao feitor de antes. Antes, açoitava. Hoje, é na base da bala, pra matar. E mata quem? São bodes expiatórios. Não tem pacto pela vida certo, pois nossos jovens negros estão morrendo. Continuam sendo assassinados pela polícia. Não estou dizendo que eles estão certos, mas o filho do branco também está lá, se droga ou se beneficia nos condomínios fechados e nas coberturas. Então, vá matar os filhos dos brancos também. Ninguém chega na Barra, na Pituba, na Graça ou na Vitória, onde também rola droga e onde rola dinheiro, porque quem está ali é gente grande. Os policiais não vão pra esses bairros e invadem; eles respeitam. Mas eles chegam num bairro como Engenho Velho ou no subúrbio e se acham no direito de invadir. Tenho ódio da polícia porque eles continuam agindo assim. Ainda continuam nos tratando de forma diferenciada. Eu digo uma coisa: quando tem um policial, eu não me sinto segura, pelo contrário. Sinto medo e me sinto ameaçada.