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Luís Mauro Sá Martino, doutor em ciências sociais e autor do livro “Comunicação e Identidade: quem você pensa que é?”, faz uma reflexão sobre a construção da identidade na era digital
Por Giulia Afiune, da Agência Pública
Qual é a oposição de “mundo digital”?
Nenhuma. Não faz mais sentido em fazer uma oposição entre “mundo digital” e “mundo real”, apenas entre mundo digital e mundo concreto, físico. O que a gente chama de realidade é um monte de significados que a gente dá para as coisas. O que eu entendo por uma maçã só é uma maçã porque quando eu vejo aquela coisa eu significo com o nome de “maçã” comestível, gostosa, torta, vovó, etc. No mundo digital, virtual, eu também estou dando significado para as coisas, só que tem o nome de avatar, foto, perfil, link. No fundo eu tenho um monte de significados, de sentidos que eu estou dando para as coisas. E é por isso que não existe oposição entre “mundo real” e “mundo virtual”. Nós estamos dentro da realidade humana, essa realidade se manifesta de muitas formas, uma delas é o cyberespaço. Ele só é diferente do espaço físico por uma questão de tecnologia.
Hoje em dia quais são os fatores que interferem na construção da identidade no mundo digital?
Identidade é uma coisa que a gente cria e recria o tempo todo. Inventa a cada dia. Essa invenção é pautada por muitos fatores: a minha vontade, a vontade dos outros, a minha vontade de agradar os outros, a minha vontade de não agradar os outros, as pressões sociais que agem em mim, que podem vir da família, do trabalho, do emprego, as minhas tensões inconscientes, que nem eu mesmo sei que tenho…Então, a minha identidade é o que resulta, o ponto de contato de todos esses fatores.
A cada momento, a minha identidade se redefine de acordo com as circunstâncias que eu tenho. Isso vale para o mundo offline e para o mundo online.
Qual é a diferença? No mundo online eu tenho um pouco mais de controle na construção da minha imagem e dessa identidade, porque se eu quiser eu posso editar informações. No mundo offline, eu não tenho como mudar a minha voz, eu posso mudar minha aparência até um determinado grau. Se eu quiser mudar meu nariz, eu posso fazer uma plástica, mas não é todo dia que eu posso fazer isso. Eu não posso escolher o ângulo que as pessoas vão olhar pra mim. Na foto do Facebook eu posso escolher o meu melhor ângulo. Eu posso selecionar o que eu vou postar, posso postar só coisas bacanas… Eu me edito com mais facilidade.
Não que no mundo offline eu não faça isso: cada roupa que eu compro, eu já to me editando e me construindo porque eu quero que os outros me vejam de determinada maneira. Se eu compro uma camiseta escrito “Bazinga” ou uma camisa social Ralph Lauren, eu sei que efeito quero provocar nos outros.
No mundo online, eu tenho uma construção mais rápida e mais dinâmica da minha identidade. Se eu não gostei da minha foto, eu troco. Teve um comentário negativo? Muda-se a foto, muda-se o texto. É diferente de perceber que eu coloquei a roupa errada no dia errado, às vezes eu não consigo trocar.
O mundo online e offline são um contínuo.
Hoje em dia esse contínuo fica mais claro porque todo mundo tem um smartphone. Ao mesmo tempo que você interage com os amigos na Faculdade, também alimenta o seu self online. O que você acha que é a influência disso e da velocidade da troca de informações?
A aceleração do tempo vem desestruturando a gente há décadas. Esse processo se intensificou nos anos 1950, mas vem desde o século XVII, com a substituição do horário do dia, da colheita, das estações do ano, do corpo humano, pelo horário da fábrica. Nós perdemos isso. Faça chuva ou faça sol, o horário de entrar [na fábrica] é o mesmo.
Agora, o volume de informações que nós temos é consideravelmente maior. O seu smartphone potencialmente tem mais informação pra você em um dia do que, possivelmente, um cidadão de Roma antiga tinha em toda vida. Mas hoje, o mundo tem um grau de complexidade muito maior do que em Roma. O que eu chamo de complexidade é a quantidade de tomada de decisões que você tem que ter. Um camponês medieval do norte da Europa na hora do almoço poderia escolher entre sopa de cevada, sopa de cevada e sopa de cevada. Acabou, você não tem que tomar decisões. Então o mundo é relativamente simples. Hoje, para almoçar aqui em São Paulo você tem quantidade infinita de possibilidades o que implica em uma tomada infinita de decisões. E isso demanda tempo, cansa. O aumento no número de informações aumenta nossa possibilidade de tomar decisões, de fazer escolhas. Isso demanda tempo e por isso acaba consumindo o tempo que a gente usaria para outras coisas.
[caption id="attachment_38662" align="alignleft" width="480"] "tenho um número maior de conexões, mas isso não significa que eu tenho mais amizades, mais contatos. Afeto demanda tempo" (Matt Britt/ Wikimedia Commons)[/caption]
Isso até dá uma certa angústia: ter um smartphone que você pode postar tudo a qualquer momento e você tem que selecionar, dentro da sua realidade física, o que é mais importante para você, ou o que tá mais de acordo com o perfil que você quer mostrar no facebook. Como a comida que você tá comendo, o que é legal postar…
Vários teóricos falam sobre o problema de estar “always on”, ou sempre conectados. Nós não temos mais espaços de desconexão. Se estou o tempo todo conectado, significa que estou recebendo informações o tempo todo. Eu tenho que interagir, que correr, responder coisas o tempo todo. Isso faz com que a gente mude a nossa relação com o tempo e com as outras pessoas. Tenho um número maior de conexões, mas isso não significa que eu tenho mais amizades, mais contatos. Afeto demanda tempo.
Comentário sobre as meninas em Heliópolis que aceitam todo mundo no Facebook.
São laços fracos dentro de uma rede. As conexões virtuais são mais fáceis. Porque como elas são editadas, eu não preciso lidar com as dificuldades de personalidade que todos nós temos. Se eu tô meio irritado um dia, eu fico offline o dia inteiro, dane-se. Eu não posso fazer isso no mundo físico. (Isso é coisa da Sherry Turkle)
É mais fácil eu esperar coisas da minha conexão do que do contato físico. Isso não é de hoje. As formas de conexão que a gente tem dependem de muitos fatores. A habilidade interpessoal não se manifesta só fisicamente, mas também no livro, na carta, online. De certa maneira, o espaço virtual, permitindo que nós, pegando só o melhor de nós mesmos, possamos interagir com um pouquinho mais de facilidade com os outros.
A distância costuma provocar encantamento. Por isso que você lembra do passado como uma coisa assim…A distância virtual também encanta. Eu converso com um cara da Finlândia e ele é super legal. A gente tem os mesmos gostos, se dá bem…Claro, você não precisa conviver com ele num dia em que ele tá mal humorado.
A gente pode se editar. Nós ficamos mais legais online. É mais fácil lidar com as informações dos outros do que com o outro sem informação. Quando eu chego pra conversar com alguém, eu to quase que no escuro. Você vai conversar com um garoto de quem tá a fim. Se ele fala que gosta da banda que você mais odeia, você precisa responder na hora. A tomada de decisão tem que ser muito rápida: sorrir pra ficar com ele? Ou cortar a conexão? Não dá tempo de você ir atrás, olhar, ver se vale a pena, fazer quase que um cálculo afetivo. Online eu tenho um pouco de tempo pra isso.
As relações são mais frágeis?
Christine Link, pesquisadora alemã. Ela fez uma pesquisa muito bacana vendo o uso de smartphone por casais. Ele facilita contatos, aumenta as conexões, mas ele não altera as características da relação. Ele potencializa pro bem e pro mal. Significa que os relacionamentos interpessoais já existem e continuam existindo midiatizados pelos smartphones. Uma pessoa que é ciumenta vai ficar olhando o tempo todo pra você pra ver se você tá olhando pra outra pessoa na rua. É o mesmo cara que vai ficar no seu perfil olhando se você tá falando com um amigo, ex-namorado.
Comportamento humano é online e offline. O que o online facilita é olhar, é a vigilância. A midiatização dos afetos vai seguir o tipo de relacionamento que você tem. Uma pessoa que quer enganar, vai usar a internet pra isso. E uma pessoa que não quer também.
O fato de você ter mais informações que influenciam o relacionamento. Se for uma pessoa mais ciumenta, vai ter mais chance de dar vazão a isso.
Não é um smartphone que vai criar ou destruir o relacionamento de uma pessoa. Mas ele pode contribuir seriamente para melhorar ou piorar, porque ele dá alcance a um contingente maior de informações.
A gente descobriu que tem alguns grupos no Facebook de “troca de seguidores”e “curta minha foto do perfil”. Rola uma negociação. Qual é a importância de uma “curtida”?
Muito bonita a tua blusa. (eu falo: obrigada). É isso, uma coisa muito humana. Aí você pode colocar vários elementos: desejo de ser aceito, status, a alegria de achar, talvez ilusoriamente, que alguém gosta de você, ou que alguém percebeu que você existe. Quando alguém te elogia, durante aqueles dois segundos foi legal.
Cada espaço social vai ter os seus objetos de prêmio. Se um cara fizer um elogio rasgado a um texto seu, vai ter mais valor do que ele elogiar seu tênis.
Curtiu sua foto? Valeu, bacana.
Se você quiser pegar por um lado negativo, pode chamar isso de vaidade. Mas não sei se é o caso. Acho que isso é humano. E tem aí um senso de comunidade. É fraco, porque eu não sei realmente quantas pessoas entrariam em um relacionamento. Curtiu minha foto? Bacana, nós pertencemos a esse grupo que se auto-curte mutuamente.
É um laço mais fraco porque é mais fácil. E você tem que romper um barreira quando vai chegar perto do outro e falar: ‘legal teu cabelo’. Inclusive porque ela é uma barreira sutil que não pode ser quebrada em qualquer situação. Uma pessoa que mudou o penteado e você não conhece muito bem, talvez você não vá elogiar. Mas no Facebook: “Mudei meu penteado” Like, like, like. O compromisso é outro. Você não vai chegar pra uma pessoa que você conhece pouco e elogiar, mas quando o cara bota lá a foto, tudo bem.
Para nós humanos ter a aprovação do grupo é uma coisa importante. A nossa vida simbólica e psíquica depende disso.
Mas e o fato de ser como um “classificados”?
Só existe status porque existe hierarquia. Se todo mundo fosse igual, não haveria status, desejo, vaidade, nada disso. A diferença pressupõe, neste caso, hierarquia.
Isso é uma coisa que é questionada em relação ao Capitalismo. O status só existe porque há pouca coisa desejada por muitos. Os que tem essa pouca coisa, vão refletir o desejo dos outros. O Marx falava isso em termos de mercadoria. Mas o prestígio é uma forma fantástica de mercadoria simbólica. O valor da mercadoria prestígio resulta da escassez dele. Por isso que eu tenho níveis de prestígio. Níveis de status: curtiu, seguiu…que é onde você vai ter os graus de hierarquia relacionados ao fortalecimento dos laços.
Você me curtiu, eu curto você. Você me seguiu, opa, já é um nível superior. Houve uma desigualdade. Não é todo mundo que me segue, nem todo mundo que eu vou seguir. Então eu pulei de status…e aí o valor aumenta.
Elas falaram que tem uns meninos que são famosos. Não eram famosos, não eram artistas…
O que é uma pessoa famosa? Na definição de um americano Daniel Bernsteen, é uma pessoa conhecida por ser muito conhecida.
Oferecia para tirar a foto com ele no shopping e transferir um pouco desse capital simbólico. Ele é famoso porque tem muita curtida e tem muita curtida porque é famoso?
Sim. É o circuito da subcelebridade. A mercadoria mais valiosa que a gente tem atualmente são as informações que a gente tem a nosso respeito. Quem sabe capitalizar em cima dela, ganha por ela. É a lógica da Sociedade do Espetáculo. A coisa que você mais tem para mostrar é você mesmo. Se você souber capitalizar isso, você entra no circuito do status, da visualidade.
Elas falam que a menina tira foto de biquíni para ficar famosa, não para ter mais like…
A fronteira pessoal era a única que o capitalismo ainda não tinha capitalizado, transformado em mercadoria. A partir dos anos 50 se tornou, e paradoxalmente virou a mercadoria mais valiosa que a gente tem. E como você vê isso? Pelas conversões de capital. Muitos likes podem significar patrocínio. Sem querer cair num marxismo radical demais, em última instância, pode significar dinheiro. Você tem uma questão econômica. Mas não é só isso. Pode ser ser bem olhado na rua, ser reconhecido, amado. Odiado, mas quem odeia também gasta tempo com você. A satisfação da vida humana não é só dinheiro.
Quando acontece uma exposição como um vídeo íntimo ou uma foto tem uma quebra dessa imagem que foi tão calculada, construída de uma forma tão consciente e de repente tudo sai do controle?
Sim, como no passado, qualquer história que pregassem a seu respeito poderia sair do seu controle. A hora que você perde o controle da representação, uma parte do nosso psiquismo se desestrutura. Porque a nossa auto-representação é constituída desde a nossa infância. A tua representação do eu é uma coisa que vem de longe. A hora em que eu perco controle sobre essa representação, começo a perder o controle sobre mim. Se espalha um apelido teu de infância, vai pesar. Quando os pais mostram uma foto de você criança, também. A valoração dessa parte que você perdeu controle determina as consequências.
Michel Foucault lembra que na nossa sociedade nós falamos muito sobre sexo e justamente por isso é um tabu. Qualquer exposição que esteja vinculada a isso vai ter uma valoração, na pior das hipóteses, ruim.
Mas qual é a diferença entre o comportamento dentro e fora das redes? Entre ter a foto compartilhada e um boato espelhado?
Velocidade, a mídia, a força, a quantidade de pessoas para quem vai espalhar. Eu aumento exponencialmente a amplitude de divulgação daquilo. Curiosamente, também aumento a possibilidade daquilo ser rapidamente ignorado. Porque como aquela informação é só mais uma, deixa quieto, passou. Para os outros, para a pessoa vai bater muito.
Nem todos os boatos pegavam, mas quando pegava era terrível.
A diferença é a velocidade. E no online você materializa o imaginário – a foto está lá – por isso tem uma força maior.
Por uma peculiaridade da internet, a foto vai ficar lá pra sempre…
Ironicamente, eu imagino que ela saia do imaginário com certa rapidez. Porque outras virão. Amanhã de manhã, infelizmente vai ter outra coisa que chama a atenção pela própria inutilidade e então nós vamos lá e vamos ficar discutindo loucamente essa outra coisa, até que, em questão de um dia, de horas, ele também desapareça.
Há duas semanas eu só falava no Lulu. Agora sumiu.
Mas a imagem fica fixada na pessoa apesar de não aparecer no feed do Facebook ?
Fica, como todas as representações que a gente faz.
Grudar a imagem depende de quem está olhando para você. Lembrando que quem fala sobre o outro também diz muito mais sobre si mesmo. Quando falam “você é isso ou aquilo”, tá bom, e você tá usando essas categorias a partir do que?
Tenho a impressão de que falta um pouco de informação sobre a biologia humana e de como a nossa espécie chegou até aqui. Eu acho isso muito curioso: “Olha, que horror! Olha o que ela estava fazendo com o namorado”. Não brinca, você nasceu como? Você foi clonado? Essa desnaturalização, essa transformação do tabu, como se fosse o ato máximo da imoralidade você manter relações sexuais com alguém. Ok, o vídeo vazou, mas de verdade, você acha que veio para o mundo como? Foucault: Quando você desnaturaliza a coisa, você acaba criando tantas representações que perde um pouco o chão.
Quando a identidade é quebrada, é muito difícil reconstruir. Se você é a namorada do fulano e ele te dá um fora, vai levar um tempo para você se recuperar porque você vai ter que aprender a ser você sem o fulano. A mesma coisa quando você trabalha em um lugar e é mandado embora.