Em algum lugar de seus longos silêncios Gabriel García Márquez deve abrigar, em vez daquela memória sem fim, a nostalgia de um tempo em que recordar era viver
Por Eric Nepomuceno, da Carta Maior
Ninguém combinou nada com ninguém, nada foi pedido a quem quer que fosse, mas existia uma espécie de pacto silencioso: não mencionar, fora de círculos absolutamente restritos e da mais rigorosa confiança, que Gabriel García Márquez perdia, pouco a pouco no princípio, e rapidamente depois, a memória.
Começou há alguns anos. Mas foi a partir dos últimos quatro que o processo se acelerou. As declarações emocionadas de seu irmão caçula, Jaime, na semana passada, correram mundo e acabaram escancarando o assunto. Ele não foi o primeiro a romper aquele pacto não declarado: um mês antes, o jornalista colombiano Plínio Apuleyo Mendoza mencionou a perda de memória do escritor.
Há algum tempo circulam rumores sobre o estado de saúde de García Márquez. São especulações de todo tipo, e o que fizeram Plínio Apuleyo Mendoza primeiro, e Jaime depois, serve ao menos para esclarecer alguns pontos.
O jornalista, amigo de García Márquez há mais de meio século, seu compadre, foi mais contido. Relatou que durante um longo tempo os dois se falavam por telefone quase todas as semanas. E que, a partir de determinada época – ele não disse quando – García Márquez deixou de ligar. Daí em diante, já não se falaram. Sempre que ele telefonava para o México, ouvia alguma desculpa delicada e viável. A explicação veio, enfim, de um dos filhos de García Márquez, que contou que seu pai não reconhecia mais as pessoas pela voz, só pessoalmente. E que por isso já não atendia as ligações.
Jaime foi caudaloso em suas declarações. Contou que ele e o irmão mais velho se falam por telefone quase todos os dias, e que o tema das conversas é recorrente: García Márquez pede que o ajude a lembrar fatos passados.
Disse que o irmão sofre de demência senil, um mal comum na família. Afirmou que há anos ele não escreve nada, e que não tornará a escrever.
Estive com Jaime em Cartagena das Índias outubro de 2010. Numa de nossas muitas conversas ele me disse que a doença do irmão estava em estado avançado.
Menos de um ano depois, estive com Mercedes e Gabriel García Márquez, em sua casa na Cidade do México. Foi uma conversa longa, de quase três horas. Durante esse tempo, ele falou muito pouco. Entrava em longos silêncios, mas cada vez que eu pressentia que estava alheio ao que Mercedes e eu dizíamos, ele intervinha. Eram comentários curtos, disparados entre sorrisos. A certa altura, perguntou por quê meu filho Felipe, que estava comigo no México e ele conhece desde os quatro anos de idade, não tinha ido vê-lo. E voltou a um silêncio profundo e prolongado.
Não ouvi de ninguém, de nenhum dos amigos realmente próximos, menção alguma a demência senil. O que sim, sei, é que aquela memória prodigiosa de García Márquez não existe mais, e faz tempo.
Conta Jaime, agora, exatamente o que me contou em Cartagena: o prolongado e intenso tratamento com quimioterapia ao qual García Márquez se submeteu para superar um câncer linfático que o afetou em 1999 acabou de prejudicar de vez sua memória. Os efeitos começaram a se fazer sentir aos poucos, e se agravaram nos últimos seis anos.
Na verdade, tem sido fácil constatar isso. Gabriel García Márquez sempre foi dono de uma memória sem limites, e essa memória se desvaneceu.
Lembro das muitas vezes que vi como ele interrogava alguém sobre determinado tema – volta e meia aconteceu comigo – e, anos depois, era capaz de rearmar a história ouvida como se tivesse sido vivida por ele dois dias antes. Era capaz de descrever determinada rua de alguma cidade como se estivesse chegando de lá. Discutir com ele era, na imensa maioria das vezes, perder tempo: acabava sempre achando alguma prova inconteste de que sua memória era imbatível.
Assim ele escreveu tudo que escreveu. Disse, ao longo da vida, que não há uma só linha, em toda a sua obra, que não tivesse como ponto de partida um dado da realidade. Ou seja: um dado guardado, intacto, em sua memória.
Bem: essa memória se acabou. E, com ela, se acabou a escrita mais luminosa das últimas muitas décadas da literatura feita na América de todos nós.
Numa tarde de novembro de 2008 ele me disse, no jardim da sua casa: ‘Não escrevo mais porque já não tenho ideias para escrever’. Brinquei, dizendo que era a mesma coisa que ele havia me dito ao longo de mais de vinte anos.
Já contei essa história em alguns textos que escrevi sobre ele. O que não contei, porém, conto agora: ao ouvir meu comentário, Gabriel García Márquez me olhou e disse num fio de voz: ‘Ideias, eu até que tenho, ou devo ter. Só que na hora de escrever não me lembro de nenhuma’.
Foi quando entendi que já não haveria mais livros do autor que certa vez disse que escrevia para que os amigos gostassem mais dele.
O pacto que nunca existiu volta a existir. Jaime García Márquez disse o que achou que devia dizer. Nos dias seguintes, Jaime Abello, diretor da Fundação do Novo Jornalismo, criada e mantida por Gabriel García Márquez, resolveu acabar com essa história toda. Negou que o escritor padeça de demência senil, disse que não há nenhum diagnóstico médico indicando a doença, e que García Márquez, aos seus 85 anos de vida, é apenas um ancião esquecediço (a palavra, em castelhano, foi ‘olvidadizo’), e que continua desfrutando dele como amigo.
Melhor assim. Em algum lugar de seus longos silêncios Gabriel García Márquez deve abrigar, em vez daquela memória sem fim, a nostalgia de um tempo em que recordar era viver.