No filme, todos descem e chapinham na depressão e na mediocridade cotidiana, até que Payne coloque a inflexão catártica determinada pelo coma da mulher do protagonista principal
Por Cristóvão Feil (Publicado em Diário Gauche)
De chegada quero dizer que “Os Descendentes” é um grande filme. O roteiro e a direção estão a cargo de Alexander Payne, que dá um tratamento leve – mas comprometido – a temas complexos da vida cotidiana. O personagem que o tempo inteiro está em cena é Matt King, herdeiro de um baronato de terras no valioso Havaí, onde nasceu o presidente estadunidense Barack Obama. Informe-se que o arquipélago foi descoberto pelos portugueses, mas os EUA, depois de invadirem militarmente as ilhas no finalzinho do século 19, anexaram ao seu território. Hoje, é um dos tantos estados dos EUA.
King, vivido pelo correto George Clooney, é um advogado rico, que não amadureceu, tem duas filhas muito jovens, e a mulher vive seus últimos dias em coma profundo, depois de um grave acidente de lancha, possivelmente durante uma bebedeira tão juvenil quanto irresponsável.
Todos os que aparecem na tela de “Os Descendentes” são indivíduos imaturos e despreparados para a vida adulta. Mesmo o veterano pai da comatosa mulher de Matt King, apesar de avançado nos anos, dá um soco no olho de um menino, por este ter dito um disparate imbecil acerca de sua mulher portadora do mal de Alzheimer. Repito: todos são juvenis, homens e mulheres improvisados para a vida adulta.
Vejam os muitos primos do protagonista vivido por George Clooney: herdeiros de uma riqueza ancestral, baseado na posse de uma terra usurpada aos nativos, aparentemente não trabalham, flanam por aí com copos na mão, camisas havaianas (sim, no Havaí, se usam camisas havaianas!) esperando ficarem mais ricos do que já são. A cena – quase no final – na qual os primos se reúnem para decidir sobre a venda de suas terras, deliberação essa que cabe ao advogado da família, Matt King, é risível e urdida com leveza pelo diretor Alexander Payne, com simplicidade e objetividade, mostrando-os em grupo, nunca individualmente, como uma pequena manada, todos em traje informalíssimo (alguns com camisas havaianas), aguardando bovinamente o momento em que poriam a mão em mais bufunfa, talvez nem mesmo sabendo o quê fazer com aqueles excessivos dólares.
Quando Matt King/George Clooney recebe a notícia do médico sobre o estado clínico terminal de sua mulher, parece que ele acorda de um longo sono letárgico, na direção oposta da mulher, portanto. Essa condição é confirmada quando sua filha de 17 anos lhe informa que a mãe/esposa estava tendo um caso afetivo com um corretor de imóveis. King ao ser informado da aventura da mulher corre desabalado pelas ruas do bairro residencial onde mora, uma cena entre o hilário e o tenso, porque o diretor é um craque e consegue fundir elementos aparentemente conflitivos num mesmo trecho narrativo e faz disso enlevo, arte e fruição, dotando a cena de grande densidade e força dramática.
Nestas pequenas soluções de roteiro é que o cara mostra o talento, seja de diretor, seja de roteirista mesmo. Outra cena que impacta, agora pela beleza plástica e poética, é quando Alex, a filha mais velha de King, recebe a notícia da irreversibilidade do estado da mãe e, na piscina, submerge chorando, o que parece agravar tanto o sufoco que sente quanto a depressão do momento. Cinema, como dizia Hitchcock, é mais imagem que palavra. As palavras são acessórios de uma linguagem narrativa fundada sobretudo na imagem e no impacto visual.
Quando se confirma que a mulher de King não tem volta, que basta desligar os aparelhos para que ela finalmente morra, todos os personagens crescem em cena, o pai, as duas filhas, e até o namoradinho de Alex, a fiha de 17 anos. O rapaz é a imbecilidade andante, uma versão engordurada de Beavis e Butthead, e no entanto, subitamente passa a ingressar na fileira dos adultos.
Esse, a meu ver, é o traço essencial do filme de Alexander Payne. A expressão descendente, em latim, significa o "que desce". Todos descem e chapinham na depressão e na mediocridade cotidiana, até que Payne coloque a inflexão catártica determinada pelo coma da mulher do protagonista principal. A partir daí ocorre o ascenso, a subida, a progressão existencial no rumo da autoconsciência, da lucidez e da desalienação da vida cotidiana. Matt King já não quer mais vender a terra ancestral, em que pese a pressão dos primos. Ele não quer mais se comportar como um ser mecânico que cumpre de forma alienada com um roteiro secreto onde não há reflexão, onde não há espaço para a dúvida e por conseguinte para a liberdade. King já não está mais disposto a fazer o que o sogro espera dele, o que os primos esperam dele, ou o que a sociedade espera dele.
Ele que fora "um homem devorado por seus papéis", como diz a socióloga Agnes Heller, dá uma cambalhota moral-existencial e começa a entender o que está a sua volta. A consciência de King agora quer fazer a "condução da vida" para buscar a auto-realização através da autofruição da personalidade. O personagem de Clooney quer elevar-se acima de si mesmo, onde o cume disso é representado pela catarse (purgação) da conjugação de fatos cotidianos inexoráveis e esmagadores para qualquer indivíduo.
Há um provérbio dos índios Guaranis, habitantes autóctones do Brasil meridional que diz o seguinte:“Quando se corre muito, há que parar e esperar pela alma”.King/Clooney "corre" muito no filme "Os Descendentes", então pára para refletir e esperar a sua alma. Ele precisa reencontrar a sua humanidade perdida, recompor os cacos do seu ser genérico, remontar a sua integridade moral e reconstituir-se como homem completo. Goethe dizia que todo homem pode ser completo, inclusive na sua cotidianidade.
A belíssima cena de despedida de Matt King da mulher vegetativa no leito de morte é um ponto alto do cinema contemporâneo: ele já está mudado, sem rancor, elevado, terno, adulto, comovido (sem pieguice) e ao mesmo tempo realista e íntegro - desalienado, enfim.