Conheça Gabi Amarantos, um dos símbolos do tecnobrega, que assimilou o pop estrangeiro e reafirma hoje as múltiplas identidades da Amazônia brasileira
Por Pedro Alexandre Sanches
O nome dela é Gabi Amarantos. Nasceu há 31 anos, dentro de uma família de sambistas. “Minha família tem uma escola de samba, a Coração Jurunense. Meus tios tinham um grupo tradicional de samba, Seja Sambista. Foi ali meu despertar de cantora”, conta. Os nomes Coração Jurunense e Seja Sambista não devem soar familiares, mesmo aos maiores cultuadores de nossas tradições, mas é porque Gabi é paraense, filha do bairro pobre de Jurunas, em Belém.
O samba corre em suas artérias, mas não corre sozinho. “Temos uma cultura forte de quadrilhas, quando acaba o carnaval já começa a preparação das festas juninas.” Gabi diz que descobriu o dom musical cantando em igreja. “Depois cantei na noite, cantei MPB, cantei Elis Regina.” E, talvez mais importante que tudo, cresceu mergulhada no forte costume local das festas de “aparelhagem” (algo mais ou menos equivalente aos bailes black do eixo Rio-São Paulo) e dos carros de som que povoam as ruas belenenses com a música dita brega do Pará. “Você já acorda com o carro de som na janela. Cresci ouvindo muito a música brega, por osmose, quase por obrigação.”
Na somatória dessas e de outras referências, Gabi se fez símbolo vivo daquilo que aos poucos vaza para o resto do Brasil sob o nome de tecnobrega. Trata-se de uma das movimentações culturais mais originais surgidas aqui nestes anos 2000, tanto em termos musicais como do aparato industrial que se formou ao redor, totalmente desconcertante para quem se acostumou a pensar em música nos parâmetros e cifrões impostos pela hoje agonizante indústria fonográfica multinacional.
Gabi não é protagonista do tecnobrega, pelo simples fato de que não há protagonistas no tecnobrega. O que há é uma pequena multidão de artistas, muitos deles semianônimos para os próprios paraenses, e um conjunto menor ainda de sucessos arrasa-quarteirão gravados, às vezes, por bandas. Nesse cenário caótico, Gabi é pioneira na construção desse novo modelo, além de personagem marcante num universo que permaneceria completamente desconhecido do Brasil caso ainda prevalecessem os ditames monotemáticos e eurocêntricos da mídia tradicional.
A moça de Jurunas é uma verdadeira panaceia racial, descendente de índios, africanos e portugueses. “Meus bisavós paternos presenciaram a abolição, foram escravos, trabalharam em engenhos de cana-de-açúcar. Minha avó materna era índia, meu avô descendia de portugueses. A história do índio é muito forte, tudo no tecnobrega vem da batida do tambor.” Seu pai, Conrado, é bancário aposentado, e a mãe, Elza, dona de casa e fazedora de bicos. “Minha mãe fazia coisas alternativas, era consultora da Avon, lavava roupa para fora. Tive uma infância pobre, humilde, meu pai era guarda de banco. Depois as coisas melhoraram.”
Se nossa identidade indígena se escondeu nas entranhas do Brasil, a negação da identidade amazônica escondeu por décadas a música paraense do resto do país. Fafá de Belém veio para o sul, Pinduca fez certo sucesso nos anos 70 com sua reinvenção tropicalista do carimbó. A originalíssima confluência de culturas chamada Amazônia fez da cultura paraense uma mistura vertiginosa de influências indígenas, caribenhas, norte-americanas e (menos) brasileiras. Os tios da tradição paraense, chamados “mestres da guitarrada”, tocam guitarra inspirados no iê-iê-iê de Roberto Carlos, no carimbó e em ritmos caribenhos como cumbia, calipso, merengue, soca...
Da mesma encruzilhada entre Roberto Carlos e o Caribe, avolumou-se toda uma tradição local de música romântica, que desembocou no chamado brega (mais tarde tratado pejorativamente por públicos ditos “informados”, tanto brasileiros como paraenses). Metade brega, metade Caribe, o conterrâneo Beto Barbosa disseminou nos anos 1980 a lambada, outro ritmo fermentado no Pará, e mais tarde abocanhado e digerido em fricote pelo baiano Luiz Caldas.
E o tecnobrega, o que é? É a incorporação da música eletrônica que grassou mundo e Brasil afora nos anos 1990 por todo esse vasto manancial musical. “Tecnobrega é a versão eletrônica do brega. Para baratear os custos de produção, a gente começou a usar guitarra, teclado e baixo dos teclados”, simplifica Gabi. Em 2002, ela fundou a banda Tecno Show, uma das precursoras de uma avalanche de bandas, artistas, discos, MP3 e hits tecnobrega. A velha cultura das aparelhagens se agregou à tecnologia e encheu de luzes, cores, telões LCD e efeitos pirotécnicos as festas cultuadas por multidões mestiças que deixaram de lado os Chemical Brothers para balançar ao som de... música do Pará.
Aqui é preciso tomar um atalho antropofágico, à maneira dos modernistas de 1922 ou dos tropicalistas de 1968. O tecnobrega é um borbulhante espetáculo de canibalismo musical. O refrão de “Thriller”, de Michael Jackson, vira “firmêê, firmêê”. “Single Ladies”, de Beyoncé, se transforma em “Não Me Segure” e “Tô Solteira”, entre outras versões e subversões. Triturado pela legião tecnobregueira, todo o pop norte-americano ou norte-americanizado ganha sotaque, cadência, molejo e tonalidade de pele paraenses.
Nascido no mesmo bairro que Gabi, o jornalista Vladimir Cunha (codiretor, com Gustavo Godinho, do excelente documentário Brega S/A) defende o caráter original da apropriação do pop estrangeiro pelos tecnobregas: “A matriz visual e sonora pode ser gringa, mas a matriz lírica não é. Quando Marlon Branco canta ?essa menina não se liga em rock/ o que ela gosta de escutar é aparelhagem?, na música ?Chupa Paula?, é uma tomada de posição do caralho. Ou quando, em ?Wal Pescador?, a menina canta ?Wal pescador, Wal pescador/ você conquistou o coração das Super-Xanas?, sendo que Super-Xanas é uma turma de meninas da periferia e o Wal é realmente um pescador da região da ilha do Marajó, é outra afirmação de identidade. E aí temos todas as outras letras que mencionam as gangues, as ruas, os bairros, os carrinhos de lanche, os camelôs, os sistemas sonoros”.
No ano passado, uma controvérsia explodiu no Pará, por conta do sucesso de um grupo baiano, a Banda Djavú, que estourou nacionalmente cantando músicas do repertório tecnobrega – e sem dar crédito aos autores paraenses canibalizados. O Pará se revoltou, foi protestar em programas populares de TV, forçou a Djavú a ter de citá-los como donos de músicas como “Me Libera”, “Rubi”, “Meteoro”, “Soca Soca” etc. Se em novembro Gabi denunciava a pilhagem das riquezas locais por colonizadores de fora, hoje ela já revê o papel do imbróglio para a cena paraense. “Foi uma faca de dois gumes. Hoje agradeço muito eles terem aparecido. Foram eles que fizeram a imprensa e as pessoas prestarem atenção na gente. Vou criar o fã-clube da Banda Djavú”, brinca.
A situação se inverteu ao ponto de a Som Livre, gravadora das Organizações Globo, se render e preparar um DVD reunindo dez bandas paraenses de tecnobrega. Deve sair em abril, com apresentações ao vivo de nomes como Viviane Batidão, Eletrobatidão, Banda Ravelly e, claro, Tecno Show. “Os produtores daqui começaram a trabalhar com tecnobrega. Eles só trabalhavam com artistas de fora, sertanejos, micaretas”, celebra Gabi.
Se antes da Djavú existir ela já gravara “La Isla Bonita”, de Madonna, em português, com o título “Quero Te Amar” e sem crédito aos autores originais, hoje reavalia esse naco do festim antropofágico: “Já fiz muito, minhas primeiras músicas eram todas versões. Mas não estou de acordo, não faço mais”. A questão ganha contornos práticos, pois segundo Gabi, hits tecnobrega foram limados do DVD por serem versões não-autorizadas. A canibália segue e seguirá rolando solta nas festas de aparelhagem, mas esse fator tem de ser escondido na institucionalização via Globo.
Esse é, por sinal, o maior elemento de novidade trazido pela indústria musical manufatureira do Pará. A tensão entre o legal e o ilegal é permanente no tecnobrega, e é exatamente nessa trincheira que a indústria tradicional tromba com indústrias alternativas e é sobrepujada por elas. É forçada a manter o discurso antipirataria, e por isso tende a combater os camelôs de rua que vendem CDs de coletânea a granel nas vizinhanças do mercado Ver-o-Peso. Mas esses produtos não podem ser considerados piratas, porque não desrespeitam direitos autorais (em geral, o tecnobrega não está nem aí para registrar suas criações nas sociedades arrecadadoras ou no Ecad) e via de regra são entregues aos camelôs pelos próprios artistas que criaram as músicas.
Gabi já levou muita música para os “empresários” do mercado informal, mas diz que a história já avançou novos passos. “Agora não tem mais essa história do camelô, isso é passado. A gente apronta e coloca no Shared, manda link para os DJs”, diz, referindo-se a mecanismos de compartilhamento de músicas via internet. “Coloco no meu Messenger, ‘baixe aqui a nova do Tecno Show’, começo a divulgar a música.”
O domínio da tecnologia é outro dos trunfos dessa turma, o que pode ser constatado no portal Brega Pop (www.bregapop.com.br), uma verdadeira mina para buscar os mais recentes hits do tecnobrega, ou tecnomelody, como agora eles preferem ser chamados. “São os produtores que não gostam do nome tecnobrega”, diz Gabi, insinuando uma repulsa da cena pelo rótulo “brega”.
Como a maioria absoluta dos colegas, ela grava suas músicas no computador, dentro da própria casa. Conta um pouco do processo: “Todo mundo tinha estúdio no fundo de quintal e gravava de modo antiprofissional. Sem querer e perceber, a gente conheceu um produtor, o Beto Metralha, que tinha estúdio, tinha o primeiro pro-tools, mas nunca tinha gravado nada. A gente foi descobrindo tudo junto. Gravava com microfone de videokê, era muito amador”. Assim era também o programa de TV que chegou a manter numa TV local, gravado em casa, sem cenário nem infraestrutura.
A subversão em si A malha semi-industrial concebida no dia-a-dia pelos paraenses foi dissecada no livro Tecnobrega – O Pará reinventando o negócio da música (Aeroplano), dos pesquisadores Oona Castro e Ronaldo Lemos, da FGV. O estudo mapeia o movimento como um fenômeno de inclusão social, demonstrando, por exemplo, que 84% dos envolvidos nas aparelhagens têm outras profissões além da música – são comerciantes, pintores, pedreiros, carpinteiros, eletricistas...
São inúmeras as evidências de que o tecnobrega recoloca num circuito de criação artística um contingente de pessoas que pelas vias tradicionais nunca teria acesso ao outrora controlado campo da cultura. É o que explica Vladimir Cunha: “Quem faz o tecnobrega é o menino e a menina pobre de periferia. Um computador completo hoje, em certos lugares de Belém, custa entre R$ 600 e R$ 900, um preço que as classes C e D já podem pagar. O acesso às ferramentas de produção musical se democratizou de maneira brutal. Fora isso tem a chegada dos celulares com MP3 player, que mudaram ainda mais a forma como essa população mais pobre se relaciona com a música. Já vi isso no ônibus, um menino e uma menina que não se conheciam trocando MP3 de tecnobrega via Bluetooth”.
As novas indústrias não são um mar de rosas, longe disso. Os donos de aparelhagens acumulam poderio, os participantes se hierarquizam, formam-se panelinhas entre produtores, DJs e artistas. O jabaculê, uma das práticas que enriqueceram e corroeram por dentro a velha indústria musical, já se faz presente no tecnobrega, conta Gabi: “Tem artista que paga para o DJ tocar sua música nas festas, é uma prática nova. Mas a música só é sucesso se o povo aclamar. Se não tiver o grito da galera, se não tremer o corpo, não adianta que não vai”.
As letras do tecnobrega em geral parecem menos incisivas e politizadas do que, por exemplo, as do hip-hop e do funk carioca. Aqui, as desavenças amorosas, o romantismo e a diversão na balada são os temas predominantes. Diz Vladimir Cunha: “Minha teoria sobre isso é que o tecnobrega não precisa de mensagens políticas ou sociais para ser subversivo. A mera existência dessa música feia e malfeita, que confronta a elite local com certos aspectos que ela prefere ignorar, já é uma subversão em si”.
Novamente aí, Gabi pode ser tomada como paradigma. O corpo é seu veículo para ostentar uma personalidade que ela classifica como “chamativa”. “Foi uma estratégia, eu queria que as pessoas me olhassem. Sempre gostei de paetês, penas, plumas, aplicações de espelhos, rabos de cavalo, cabelão, boá de pele, maquiagem carregada no glitter”, descreve os figurinos que, obviamente, ela mesma inventa. É o que ajuda a aproximá-la da comunidade gay de Belém.
“Sou a rainha GLBT, apesar de eu não ser homossexual”, festeja. Mas ela sabe que o visual que olhos do Sudeste associariam imediatamente ao imaginário drag queen tem muito a ver, antes disso, com a herança indígena e amazônica. “É uma drag mais indígena, a gente tenta, com os recursos que tem, colocar a modernidade no índio. Tem que ter um CDzinho pendurado. Não acho legal copiar só Beyoncé, Britney Spears e Madonna.”
Cita como uma de suas referências Eloy Iglesias, cantor e drag queen paraense que anima anualmente a Festa da Chiquita (uma espécie de parada gay que acontece dentro das celebrações católicas do Círio de Nazaré) cantando rocks de Cazuza. “Ele tem uma linguagem amazônica, usa uns moicanos de pena, plumagens, sementes”, diz, lembrando que muitas palavras usadas na subcultura gay, como “pajubá” e “erê”, vêm de línguas indígenas.
Sobre autoafirmação feminina, Gabi responde de viés: “Na minha música procuro usar mais o contexto social. Mas agora estou começando a abordar esse tipo de assunto. Tem uma música nova minha que a governadora Ana Júlia [Carepa, PT-PA] quer usar na campanha de reeleição. Fala da mulher que diz ‘não preciso de você’, que consegue viver e se sustentar sozinha, que o homem é um atraso na vida dela. O governador anterior era homem, a governadora não quer que ele volte, a letra diz: ‘Os erros que antes você cometeu/ eu tive coragem e fui consertar’”.
Vladimir complementa: “A mesma Gabi que se impõe como objeto sexual para as classes C e D, que não comungam do culto ao estereótipo branco de beleza, é capaz de fazer uma música como ‘Surra de Chicote’, sobre a violência contra a mulher, na qual ela diz que vai dar uma surra num cara que a agrediu e conclama as outras mulheres a fazer o mesmo quando forem agredidas”.
Há quem ouça um tecnobrega e tome o estilo por “pobre” ou “repetitivo”, eis aí a doida cornucópia de identidades que ele carrega. A própria Belém, antes hostil à música criada por seus cidadãos mais marginalizados, começa a ceder. Ela conta: “No começo foi um escândalo, ‘Meu Deus, que música horrível, de má qualidade!’, ‘Que letras ruins!’. Fomos muito apedrejados. Hoje dá até pra zoar, porque quem criticava já gravou tecnobrega. Eu só me divirto vendo. Todo mundo tinha vergonha, agora todo mundo quer uma fatia no bolo”.
Nossa heroína índia-negra-portuguesa finaliza, em ritmo de pleno otimismo: “Belém hoje é uma democracia racial. O tecnobrega virou moda. Antes eu era proibida de tocar na Estação das Docas, agora toco lá. Sou convidada para fazer comercial, jingle político. Pela primeira vez em 13 anos de carreira consegui aprovar um projeto em lei de incentivo à cultura”.
O mundo novo pode não ser o país das maravilhas de Alice. Mas que ele é profundamente diferente e mais plural que o mundo velho, isso ele é.
Essa matéria é parte integrante da edição impressa da Fórum 84. Nas bancas.