Estado pede desculpas oficiais a José Celso Martinez por repressão durante a ditadura militar e concede bolsa vitalícia de 5 mil reais.
Por Camila Souza Ramos
Após 36 anos de sua prisão política, José Celso Martinez recebeu do Estado brasileiro um pedido formal de desculpas. Na época da ditadura militar, por quase um mês, ele ficou preso no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) onde foi torturado com pancadas e choques. Após cinco anos do episódio e do exílio, ele voltou ao Teatro Oficina e deu continuidade aos trabalhos.
“O importante é que o que aconteceu no passado foi reexistido”, diz Zé Celso, no Teatro Oficina, berço de sua carreira e onde ocorreu a cerimônia com representantes dos ministérios da Justiça e da Cultura.
O pedido oficial de desculpas faz parte de um programa do Ministério da Justiça, a Caravana da Anistia, que já julgou 54 mil pedidos de pessoas que alegam ter sofrido perseguição política durante a repressão militar e querem receber do governo o reconhecimento da responsabilidade estatal na época.
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A proposta da Caravana da Anistia é realizar o julgamento dos casos nos locais onde ocorreram as prisões e perseguições. O julgamento de Zé Celso fez parte da 35ª edição do projeto.
“É um momento em que o estado brasileiro promove um pedido de desculpas públicas por quando perseguiu e causou prejuízos. É um ato de aprendizado com as violências do passado para que não se realizem no futuro”, explica Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia.
“O caso de Zé Celso foi fácil de julgar porque é um caso notório”, conta Abrão. Ele lembra, porém, que casos de pessoas que foram perseguidas pelo regime militar e que não tem notoriedade são mais difíceis de julgar. “Daí a importância da abertura dos arquivos da ditadura”, defende.
Em referência também às tentativas do grupo Silvio Santos de construção de um prédio ao lado do espaço, o que impediria a iluminação natural do Teatro Oficina, Zé Celso observa: “foi importante essa cerimônia se realizar aqui no Teatro Oficina, que não é unanimidade. Muitas pessoas odeiam esse teatro, porque é onde se pratica a liberdade”.
Peças proibidas
A peça de Zé Celso que mais causou furor entre o público da ala conservadora da década de 1960 - e que mais irritou os militares - foi “Os Pequenos Burgueses”, que ao mesmo tempo em que consagrou o Oficina como grupo de teatro, levou o teatrólogo a ser visado pelo regime. A peça, de autoria de Maximo Gorki, teve que ser retirada de cartaz, depois de ter conquistado prêmios como o de melhor direção no Festival Latino-Americano.
O Teatro Oficina só viria a ser invadido pelos militares em 21 de abril de 1974. Naquele ano, quando se completaram dez de ditadura, foi feita uma vigília no teatro, preparando os atores para as filmagens de “O Rei da Vela”. “Fomos numa passeata dançante da rua Jaceguai até o Cemitério da Consolação. Uma coisa inconcebível para aqueles anos”, conta Zé Celso, em seu processo de pedido de anistia. O objetivo do grupo era chegar ao túmulo de Oswald de Andrade como parte da série de iniciativas para reinventar a cultura brasileira.
Diversas outras peças e atos públicos foram cerceados pelos militares ou apoiadores do regime, como as invasões promovidas por grupos paramilitares em “Roda Viva”, de Chico Buarque de Holanda, os cortes em “O Rei da Vela”, “Galileu Galilei”, e a proibição da montagem de “Pena que Ela Seja uma Puta”.
Durante quatro anos, Zé Celso ficou exilado em Portugal e Moçambique.
Tortura contemporânea
“Chorei muito com a cerimônia, mas precisamos ter os olhos muito voltados para hoje, porque ainda há problemas gravíssimos contra os direitos humanos”, fala o teatrólogo. Para Zé Celso, a tortura ainda não foi superada: “o ato de torturar, neste momento, está acontecendo. Bandido e preso político é gente. Torturar um ou outro não tem diferença, está torturando ser humano”, completa.
Zé Celso lembrou-se de alguns episódios de quando foi mantido preso no Dops. “Lembro-me de quando estava sendo torturado, que me deram choques, me bateram, e depois um deles (militares) veio e ali eu vi o rosto dele, o olhar. Ele também era um ser humano”. “Uma pessoa dessas deve ser castigada de amor, deve receber uma tortura amorosa muito forte. As pessoas têm que gozar a vida, aí elas não são torturadoras”, brinca.
Zé Celso acredita que o dia 7 de abril ficará para a história, mas não se acha um privilegiado, e cobrou que o Estado se desculpe com todo o povo brasileiro. “Tem muita gente que precisa ser anistiada, o provo brasileiro inteiro, essas pessoas que moram na rua e acabaram de perder albergues”, cita.
Além do pedido de desculpas, Zé Celso também recebeu a garantia de uma pensão vitalícia de R$ 5 mil, além de R$ 500 mil retroativos, como indenização. Ele afirma que investirá o dinheiro no que for preciso para o teatro, que hoje recebe apoio do Ministério da Cultura, da Petrobras e dos Correios. Também gastará em sua saúde – “sou cardíaco” – e com sua vida pessoal: “Eu sou uma pessoa muito cara. Eu gosto muito de vinho, de maconha, essas coisas são caras”, diz.
Já foram anistiados pelo projeto Caravana da Anistia os cartunistas Ziraldo e Jaguar (Sérgio Jaguaribe), e homenageados o educador Paulo Freire, o ambientalista Chico Mendes, o ex-presidente João Goulart e o ex-governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola.
Fotos: Divulgação.