O Enem e os vestibulares precisam ser adiados

Tomaz Amorim escreve sobre como a crise do coronavírus acentua o abismo educacional brasileiro e aponta para a necessidade de um adiamento do ENEM e dos vestibulares, assim como de medidas paliativas como o oferecimento de pacotes de dados de internet gratuitos para todos os alunos do Ensino Médio de escolas públicas

Escrito en COLUNISTAS el

Os concursos públicos no Brasil são organizados segundo princípios de mérito e de bem público. Em cenários de vagas limitadas, escolher os candidatos mais bem preparados seria o melhor para a sociedade como um todo. Os vestibulares de universidades públicas e o Enem supostamente seguem os mesmos princípios. Os alunos mais bem preparados formariam os melhores profissionais, que contribuiriam, portanto, melhor para a sociedade. 

Devido ao reconhecido abismo escolar que existe no Brasil, no entanto, que faz com que os alunos de escolas particulares tenham melhor acesso à educação e, consequentemente, notas maiores do que a dos alunos de escola públicas, as melhores universidades do Brasil, públicas e gratuitas são, contraditoriamente, frequentadas por ex-alunos de escolas particulares e pagas. Isso é conhecido e lamentável (inclusive porque impacta nos temas e na qualidade da pesquisa feita por um grupo muito limitado da população do país). As recentes leis de cotas no Enem e sua adoção parcial por universidades como a USP e a Unicamp conseguiram melhorar muito a situação demográfica das universidades na última década. Mas a pandemia causada pelo coronavírus e o consequente fechamento das escolas públicas, com a manutenção absurda da data do Eem anunciada pelo governo, coloca todo esse avanço em risco. 

Imaginemos por um instante uma jovem de periferia, há quase dois meses sem aulas, que sonha em entrar em uma universidade pública. Como estará se sentindo? Se as chances já eram poucas, agora, parecem quase nulas. O cursinho popular que ela frequentava também fechou, seguindo as orientações sanitárias. Os professores tentam passar a matéria por grupos de WhatsApp, mas a cada vídeo o pacote de dados do celular dela vai acabando. O espaço da casa também não ajuda na concentração. Ela divide o quarto com mais três irmãos. A televisão está sempre no volume alto e ela tem que ajudar a cuidar dos pequenos, já que a mãe continua passando a maior parte do dia na casa da patroa. (Ela insista para que a mãe pelo menos vá e volte usando máscara). O que o estado e as universidades estão oferecendo para essa jovem? Vamos continuar fingindo que nada aconteceu nas escola e que ela está em pé de igualdade para disputar com colegas de escolas técnicas ou de escolas particulares que estão já há semanas tendo aulas à distância em lares mais confortáveis para o estudo? 

Se a diferença entre os sistemas de ensino era abismal, agora ela é total. Alguns simplesmente têm aulas, outros não. É preciso reconhecer que há algo de quase sádico em colocar esses alunos competindo em uma mesma prova, em uma mesma data, pelas oportunidades que uma boa universidade pública pode oferecer. A responsabilidade, sem dúvida, é do estado, que decide a data da prova, mas também das universidades, que acatam esse sistema de apartheid educacional. 

Há, no entanto, algo de acertado no argumento do governo pela manutenção da prova. De fato, seria um desperdício monumental perder todas as primeiras turmas de todos os cursos de todas as universidades públicas e programas de ensino superior vinculados ao Enem. Essas turmas são esperadas, há orçamento destinado a isso, suspender a formação de um ano de professores, médicos, engenheiros e músicos seria um descalabro. Seria jogar fora o bebê com a água suja, por assim dizer. O problema que precisa ser enfrentado é o critério de seleção em um contexto de desigualdade acelerado até a diferença total. 

A solução passa, então, por tentar resolver ou mitigar as diferenças. Isso passa, antes de tudo, por adiar ao máximo a data dessas provas, inclusive com atraso no começo do primeiro semestre de 2021, se necessário. Porque se a cada dia que passa a diferença entre os alunos de escolas particulares e públicas fica maior, a cada dia a prova fica mais distante daquele ideal meritocrático (por fantasioso que seja). Adiar as provas não tira a vantagem dos que começaram a estudar antes, mas oferece uma chance mínima de preparo àqueles que até agora não conseguiram ainda começar a estudar. 

Em seguida, e com urgência, é preciso oferecer condições de estudo. Se a saída para a educação tem sido o precário ensino à distância, é fundamental, de antemão, oferecer recursos materiais para que os alunos possam participar das aulas. Isso significa oferecer aparelhos, como telefones celulares e computadores, e, principalmente, acesso à internet. Os governos deveriam estabelecer acordos com as companhias telefônicas para que todo aluno do ensino médio de escola pública tivesse acesso ilimitado a pacotes de dados, sobretudo porque a maior parte das aulas e da interação se dá em forma de vídeo. Falar em manter o ENEM e os vestibulares sem pensar nisso seria o mesmo que pegar uma lista dos mais ricos, nas diferentes modalidades das cotas, e dar as vagas para os primeiro lugares.

E por falar em cotas, diante desse cenário pavoroso, vemos novamente a importância da lei de cotas (e a importância de sua renovação no futuro próximo!). Situações extremas, como o que vivemos agora, mostram a fragilidade do sistema público educacional e as grandes populações que estão à sua mercê. É fundamental, por essa estrutura precária, que um número de vagas seja reservado a alunos de escola pública, negros, indígenas e pobres. É um alívio saber que não voltaremos aos anos noventa em que turmas inteiras de cursos de Medicina na Bahia, por exemplo, não tinham sequer um aluno negro. Os avanços, o enegrecimento, a presença periférica em massa nas universidades, está de alguma forma assegurada pela lei. 

Ainda assim, sabendo como funcionam as dinâmicas sociais, sabemos que há também uma hierarquia entre os menos favorecidos. Esse também é o risco diante do qual nós estamos em 2021. Que, dentre os cotistas de escolas públicas, entrem apenas aqueles de escolas técnicas e militares (que possuem mais recursos e são frequentadas em média por alunos de famílias mais ricas); que dentre os alunos de escolas técnicas, entrem apenas os brancos; que dentre os alunos negros de escolas técnicas, entrem apenas os que têm mais dinheiro, etc. Tudo isso já era tendência antes da crise mas, como sabemos, a crise vem justamente acirrar as contradições sociais, prejudicando ainda mais quem está embaixo. Ainda que sejam providenciais as cotas neste contexto, ao garantir a porcentagem de vagas, elas mantêm em algum nível a lógica do privilégio. 

Diante de uma situação que se aprofunda sem mostrar soluções consigo pensar em apenas duas maneiras verdadeiramente éticas de seleção (se é que falar de vestibular e seleção para universidades públicas em um país tão desigual tem algo de ético), caso o governo e as universidades insistam no absurdo de não adiar as provas: 

  1. estabelecer um ranking através de uma média das notas dos últimos dois anos dos alunos, levando em conta apenas a média interna da própria escola, já que a comparação, de antemão, é impossível entre os sistemas; 

    Se é para considerar mérito e potencial de aprendizado, visando o melhor bem público, que seja em relação aos pares, do mesmo bairro, com oportunidades mais parelhas do que com os amigos em sistemas “escandinavos” nos bairros ricos.  
  2. sorteio, que os alunos se inscrevam nos cursos que quiserem e que sejam selecionados aleatoriamente;

As universidades prepararão cursinhos e disciplinas de recepção para os alunos menos bem preparados (já existem programas bem sucedidos deste tipo nas universidades paulistas). Este método, se parece radical (radical, na verdade, é a desigualdade educacional no Brasil), não tem nada de novo. Acompanha discussões do movimento estudantil desde que as universidades públicas começaram a limitar o número de alunos inscritos. Através dele se resolve de uma só vez a questão das turmas em 2021 e a questão igualmente importante da representatividade demográfica dos alunos. 

Como argumentei em outro texto, a crise do coronavírus, ao acelerar as desigualdades, nos tira temporariamente da passividade diante delas. Abre possibilidades de visão e de ação. A falta de aulas nas escolas públicas e a chegada do Enem e dos vestibulares nos lembra que o Enem e os vestibulares já são a barbárie, são uma farsa produzida pela supremacia de classe e raça que a Academia finge não ver.

Ainda assim, lutamos a luta nos termos em que ela é dada, lutamos e conseguimos cotas e, agora, na emergência do vírus, lutamos pelo adiamento das provas para que os menos privilegiados tenham alguma chance. Lutamos por outros métodos de entrada como o sorteio que, se parecem absurdos, basta lembrar que se todos pagam a universidade pública, e se ela não tem vagas para todos (por que não tem? não poderia ter?) que ela seja frequentada proporcionalmente por todos. Nesse gesto, ainda alcançaríamos, de quebra, a turma mais demograficamente democrática da história do ensino superior brasileiro. O que isso diz sobre o estado atual das universidades?

Para terminar, minha amiga Mariana Ruggieri, que também tem oferecido disciplinas de graduação da Unicamp, lembrou em uma conversa sobre o ENEM da série distópica da Netflix “3%”. Essa série brasileira captura bem as especificidades de um apocalipse brasileiro. Nela, a divisão social absolutamente sectária, que garante bem estar apenas à parte da população que dá título à série, é mantida através de uma prova para jovens muito parecida com o vestibular.

Cena do primeiro episódio de série brasileira 3% da Netflix. Foto: Reprodução

Se for mantido nos moldes atuais, o Enem de 2020 sem dúvida terá essa imagem de uma fila de jovens esfarrapados rumo a uma prova sem sentido, mais amparados pela fé de uma vida melhor do que por capacidades treinadas e adquiridas. Se o coronavírus nos coloca, ainda que temporariamente, em modo apocalíptico, precisamos adotar medidas de solidariedade. Precisamos resistir a sua lógica, não acelerá-la. Precisamos nos lembrar dos que têm menos e que sofrem mais, não apenas agora, mas, como consequência, nos próximos anos, pela perda de oportunidades-chave como a matrícula em uma universidade de qualidade. Precisamos nos organizar para que haja garantias de ampliação da educação, de resguardo com os mais frágeis, de abertura continuada da universidade, não retrocesso a uma universidade elitista. É preciso, sobretudo em um momento assim, cuidado e oportunidade para todos os nossos jovens, não apenas para aqueles conhecidos 3%.