A lír(ic)a de Carlos Orfeu em “Invisíveis cotidianos”

Como nenhum tempo é sombrio demais para a poesia, Tomaz Amorim analisa o claro e escuro da poesia de Carlos Orfeu no recém republicado “Invisíveis Cotidianos”

Fotos: Reprodução
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Carlos Orfeu, nascido em Queimados, Rio de Janeiro, tem 32 anos e dois livros publicados: “Invisíveis cotidianos”, lançado em 2017 pela editora paranaense Literacidade e “Nervura”, publicado em 2019 pela editora paulista Patuá. “Invisíveis cotidianos” foi republicado em 2020, em nova edição, pela editora Patuá, e é dele que falamos nesta primeira parte de uma análise sobre a lírica, e a lira, deste Orfeu brasileiro.

Na “imensidão íntima das pequenas coisas”, como diz a epígrafe de Bachelard, tudo, se olhado, e, depois, falado, da maneira apropriada, contém uma imensidão. Sobretudo os objetos, tão desprezados na ontologia ocidental, ganham uma dignidade. A natureza-morta, gênero da pintura surgido no século XVI, representa bem esta ambivalência. Olha o que já viveu - flores, frutas, animais - e que agora está morto, mas que, pela misteriosa alquimia do pincel, retorna de alguma forma, como imagem cristalizada, à vida.

No poema “formiga morta”, a personagem principal (protagonista, aliás, de diversos outros poemas, exemplo mínimo-máximo de estar no mundo), imóvel no fundo da xícara cheia de restos de açúcar, a banalidade máxima, aparece como sujeita de um olhar dramático em que facas tem dentes, pães dormem e o fim do mundo é seu próprio fim.

E se o morto não ressuscita, o olhar de quem olha passa a perceber melhor que está vivo - e o que está vivo. Tudo, a partir desta representação dignificadora da morte, por assim dizer, ganha mais vida, ou em outras palavras, ganha vida humana.

O besouro de Orfeu imita o Sísifo de Camus, que imita a banalidade e a repetição da vida do trabalhador moderno. Trágico, mas se é preciso imaginar Sísifo feliz, também é possível imaginar felizes este besouro humanizado e estes humanos besourizados.

Também as peras e maçãs de Cézanne devolvem a dignidade que a consciência objetificadora arrancou das frutas. Elas não reinventam um tipo de relação entre quem olha e o que(m) é olhado, que não passa por uma noção de propriedade, posse, aprisionamento da visão ocidental? A série “objetos” do livro tematiza esta revolta dos objetos “contra a insânia do homem”, nela os objetos “racionalizam-se”, quase ironicamente diante da “racionalização” que justamente levou os homens à insânia objetificadora.

A natureza-morta, neste sentido, é uma escolha precisa. É ao mesmo tempo sintoma e cura, veneno-remédio, de um olhar mortificador que o sujeito ocidental dirige à “natureza”. A natureza é, como que, reanimada. Reencantada em seu mistério vivo. Se o moderno mortifica para, num truque necromântico, reduzir, peras e maçãs igualadas a mercadorias-fetiches, seu contraponto, a arte, quebra o feitiço e libera de novo a força vital de tudo que é, como o fazem os “figos” e “romãs” de Orfeu. Sua poesia mostra e ensina um olhar que, ao invés de mortificá-lo, infinitiza-o, conservando-o em estado de “sólido/enigma”. 

Muitas vezes, olho e olhado se encontram no presente do poema. Esse é um dos méritos dessa poesia, atentar para o processo de mão dupla que envolve este processo complexo. Alguém descreve uma imagem, em movimento, que se elide “na estante / sobre as janelas dos olhos / a imobilidade dos rostos”. A estante que é olhada, olha de volta: uma janela emoldurando os olhos sobre os rostos que permanecem parados. A estante olha, o rosto para, quem se move é o olhar, que também é visto, não apenas pela estante, mas também pelo leitor: “o rosto pode ser cela / no teu olho // ou quintal / onde teu cílios // passeiam como folhas fossilizadas”. Se às vezes o olho é tematizado, outras vez é o olhado, em movimento curto, eternizado, como um gesto de ator, como um gif animado. O ângulo de uma tampa de garrafa, cortando o ar, para sempre, rumo ao chão...

“Invisíveis cotidianos” começa com a série “sépia” de três poemas. O pigmento sépia, tirado das entranhas de um molusco de mesmo nome desde a Antiguidade, dá à fotografia o tom crepuscular do passado. É a natureza-morta em forma de filtro, tão querido pelos jovens na fotografia digital. Se, por um lado, revive o mortificado pelo mercado, também lembra, ao modo barroco, a transitoriedade da vida - mantendo-a assim em movimento, em transformação permanente de morte em vida, vida em morte, como lembra a imagem do bolor, presente em alguns versos. Movimento vivo, cheio de possibilidade com destino final inexorável: aviso e oportunidade. E sendo cor, neste versos, o sépia avisa tudo isso, novamente, via processo, precário, de olhar: “na sépia / os relógios / mortos // rostos / apodrecem / no amarelo / das idades // apagadas / nas águas / salobras / dos olhos / estilha-/ çados”.

Há nesta relação com a morte um jogo, um humor sombrio sintetizado perfeitamente pela estranheza de toda caveira que, trágica, parece rir. Algo de humano sobrevive à morte do corpo. Quem sorri, procura logo os olhos dos seus interlocutores para que eles se contagiem pela risada. Mas a caveira que ri, embora morta, ri sem olhos que possam comunicar. Os olhos, transformados também em “duplo buraco”, lembram as várias estações do olhar, inclusive seu fechar de olhos. Morrer - e daí a frequência das imagens de cegueira - é parte da vida.

Há que se falar, portanto, em um crepuscular na poesia de Orfeu, de claros e escuros, do Sol como “fruto que se come / com os dentes dos olhos”, do Sol que também, no entanto, se põe. Sua poesia esconde e mostra e isso se marca já no comprimento curto dos versos. Tímidas, as palavras correm para se esconder já na linha debaixo. Mas não sem antes iluminar com força um canto específico do quarto escuro em que se está como leitor.

A imagem vai, aos poucos, surgindo, econômica, precisa, como um rosto diante de uma vela (não por acaso, a presença de Levinas nas epígrafes e na série “o rosto é uma casa que desaba na paisagem”), como o rosto da criança surgindo, olhando e sendo olhado, na hora do parto:  “da paisagem que emerge / das janelas vaginais”. A casa como um corpo vivo que vê e é vista nascendo, fazendo amor e morrendo.

Algumas imagens se repetem, em versões diferentes. É o pequeno, escolhido à dedo, e analisado. Há um prazer (e uma dor) de olhar, toda uma sinestesia dedicadas às coisas. Um imagismo, ligado ao carrinho de mão vermelho de William Carlos Williams, mas também, latino, de Lorca. Também cabralino e celaniano (como mostra “A poética do silêncio”, belíssimo ensaio de Modesto Carone), no sentido de sua economia e clareza (distinto, no entanto, no sentido da escolha das imagens). Também, pelo poder de síntese e sensibilidade, o haikai japonês (“a planta toca / o sono / do gato”). Orfeu, vê-se, é leitor e mobiliza a tradição como lhe convém. Trata-se, sem dúvida, de uma poesia inimiga do excesso, calculada, mas, ao mesmo tempo, generosa, sem medo de oferecer aos olhos que leem e aos olhos e ouvidos que imaginam toda uma gula de imagens sensuais: “rasteja a lagarta / no fio de prata / de sua lâmina”.  

Um dos procedimentos recorrentes no livro é um tipo de transfiguração das imagens, do inorgânico, para o orgânico, do animal para o humano, do específico para o amplo. Uma lâmpada que é uma crisálida que é um olho alucinado que é uma luz doméstica (parece que estamos em Guernica). Uma folha de “jornal” que invoca em seu voo curto uma construção, uma cidade inteira. É como se imagens secundárias fossem convidadas a orbitar a imagem inicial e no fim do processo ela é a mesma, mas, ao mesmo tempo, é amplificada, como um planeta que ganhasse anéis.

Não se tratam, no entanto, de objetos ou imagens grandiosos, pertencentes ao imaginário clássico da poesia. O olhar é reeducado a olhar para rachaduras, baldes, cadeiras, azulejos, gavetas, pelos no ralo do chuveiro, fósforos, jornais, “botas tristes”, tão roídas e melancólicas, mas, ao mesmo tempo, redimencionadas, transfiguradas, redignificadas, como “O par de sapatos” de Van Gogh.

“Invisíveis cotidianos” é um álbum de fotografias poéticas que tenta tornar visíveis, arrancados dos cotidianos, aquilo que nós chamamos de meros objetos, tenta em uma “arqueologia de ver / e escutar / o silêncio das coisas” não mais reduzidas a natureza-morta, natureza muda.

Contra a poesia mais hermética pesa recorrentemente a acusação de escapismo, “parnasianismo”, falta de contato com o mundo extraliterário e com o presente. Se em muitos casos isso é verdade, o que esta crítica tenta mostrar é que a reeducação do olhar que a poesia de Orfeu promove gera o contrário. Porque sua desautomatização, a dignidade que ele oferece às coisas é universal, ou seja, também é destinada aos humanos. A história ensina que uma visão de mundo, uma cosmologia e uma ontologia, como as ocidentais, que tratam a natureza como objeto, o animal como coisa, o objeto como natureza-morta, faz o mesmo com humanos. Bastaria lembrar disso para encontrar o gesto crítico de “Invisíveis cotidianos”.

Falar dos objetos desprezados é falar sobretudo dos humanos desprezados. É de propósito que não se fala da “negritude” da poesia de Carlos Orfeu, poeta negro, como se faz com justiça, por razão, em relação à poesia de Lubi Prates. Se há múltiplos caminhos para tratar da questão incontornável de ser poeta negro, de ser no Brasil “Um corpo negro” (título do livro de Prates), sua poesia dá ao tema o mesmo tratamento que a todos os outros: através do movimento rápido e preciso de um olhar que eleva o que era tido como menor, vivifica o que era considerado morto, presentifica o ausente, o “banzo” de um passado outro, reimaginado, quem sabe, num futuro outro:

“fuzilam

a cor negra dos corpos

sua honra

concede pétalas de lágrimas

em revoada

sobre o asfalto

o declínio no beijo da mãe

com o fel de grito na articulação das juntas do pai

ajoelha cruzes no rosto do filho

(...)

coletando ossos

o riso canta

na residência de lábios

que sonham amanhecer”. 

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum