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“Bacurau” (2010), o novo filme de Kléber Mendonça e Juliano Dornelles, vencedor do prêmio de Júri de Cannes este ano, parece se esforçar para manter a expectativa do leitor em suspense. O próprio gênero do filme é híbrido de ficção científica, velho oeste, drama social e disputa política. A cada cena o espectador é surpreendido com saídas não óbvias. Aos poucos a história - que é bizarra, mas estranhamente familiar - vai se revelando, até um fim apoteótico. Onde foi que já vimos isso?
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Kléber Mendonça parece atualizar a história de Canudos no século XXI, mas com gesto otimista: apesar de tudo, Canudos resiste. Não há mais, no entanto, idolatria messiânica, com sua carga de patriarcado e negação da vida. Há múltiplas raças, identidades de gênero, orientações sexuais, uso de entorpecentes farmacêuticos e tradicionais, cultos seculares e religiosos, licenciosidade sexual e flexibilidade moral. O contexto geral distópico esconde no mais íntimo do seu seio, na pequena Bacurau, um tipo precário de utopia. (Como, talvez, o papel que o cinema nacional ocupa no Brasil de 2019). Antônio Conselheiro é substituído pelo professor e pela enfermeira da cidade que organizam assembleias no fim da noite para cuidar da distribuição de comida e dão conselhos que podem ou não ser seguidos, dependendo da vontade de cada um. Ninguém obriga ninguém a nada em Bacurau, os pecados são reconhecidos (a enfermeira se desculpa pelo barraco, o mocinho é um matador em processo de recuperação), mas tolerados porque o inimigo de verdade vem de fora.
“Bacurau” é uma tipo de celebração da comunidade em um contexto de hostilidade global. O fora invade de maneira cada vez mais agressiva as comunidades. Bacurau resiste, por necessidade e por estratégia, por ter suas belezas, seu humor, sua música, seus ritos, sua comunidade, sem se ostracizar. Seus filhos saem e voltam, os estrangeiros são bem-vindos, mas o contexto, o risco de desaparecer por uma invasão externa permanente, é reconhecido por todos. Bacurau não se define a partir de fora, mas a partir de si mesma. O professor ensina isso para as crianças desde pequenas: se o mapa do Google não nos mostra, vejam este mapa aqui, o nosso, aqui nós aparecemos, nós sabemos de nós. Há, no entanto, forças invasoras, papel principal dos estados nacionais no século XIX e XX (história de aldeias, quilombos e experimentos como Canudos, que ousaram querer estar fora do estado) e no século XXI das grande multinacionais, mineradoras, madeireiras, etc. Em Canudos, o exército da recém-formada República, em Bacurau, mercenários, militares com status de turistas de luxo, convidados pelo próprio estado para aniquilar a população.
Nos cortam a água, o acesso às estradas, nos apagam do mapa, nos vendem para turistas, querem nos varrer do mapa. Onde já vimos isso? São as cidades como Petrolândia (PE), Glória (BA), da terra indígena dos Truká (Cabrobó-PE), Itacuruba (PE) e Rodelas (BA), inundadas pelo estado para a construção da hidrelétrica de Itaparica. Vilarejos, povoados, comunidades literalmente apagadas do mapa, como Bacurau. São cidades como Brumadinho e Mariana, soterradas por barragens de multinacionais. São territórios tradicionais, terras indígenas e quilombolas, atacadas por estrangeiros (brasileiros ou não, tanto faz) armados desejando o mesmo que os invasores de “Bacurau”: extinguir a cidade e sua população. É o turismo sexual como forma de convite ao dinheiro gringo. O enredo de “Bacurau” é absurdo, mas absolutamente reconhecível, eis uma de suas forças principais.
O humor discreto e inteligente do filme bebe de uma sabedoria tradicional. Há uma celebração do saber do matuto, suas ervas, sua organização espacial própria, seus códigos. Isso se repete em diversas cenas. Os de fora, os modernos, acham que assustam o homem na estrada com um disco voador. O homem finge que não percebe e avisa o conterrâneo: era um drone disfarçado, e não é um drone daqui, fique esperto. Fingem estar um passo atrás para estar um passo na frente. As visitas indesejadas acham que surpreende a cidade, mas ela tem seus postos de observação e seus meios de comunicação - o grupo de Whatsapp da cidade cumpre a mesma tarefa que o farol de alerta na distância. O prefeito é boicotado, sua lógica eleitoral sabotada. Bacurau, como toda comunidade viva, não esquece de sua história, ela se lembra através de seus espaços, como a escola e a cadeia subterrânea, e através de sua ancestralidade. A avó velada no começo do filme, que tantas vidas e frutos gerou, passou adiante sua sabedoria. Bacurau não esquece.
O aspecto de revisão histórica, de atualização com final feliz (há nisto um gesto muito parecido com o dos últimos filmes de Quentin Tarantino: a vingança dos derrotados, judeus que vencem nazistas, mulheres que vencem feminicidas, negros que vencem escravocratas, etc) fica claro pela maneira brilhante com o que o turista à convite do estado entra no museu da cidade. Este museu de que se ouve falar bastante no filme, para o qual os turistas são sempre convidados a entrar, até que finalmente, no ponto alto de tensão do filme, um deles entra. Vimos ali a história de de Bacurau, história tantas vez ocorrida nos sertões e litorais do país. O museu de Bacurau é um museu de resistência, lembra das lutas do passado ao mesmo tempo em que alerta os invasores sobre a possibilidade de lutas futuras. A placa de entrada da cidade diz logo no começo do filme: “Se for, vá na paz”, porque se não for na paz, as imagens do museu mostram o que acontece: cabeças cortadas de invasores fotografadas e as armas da luta penduradas na parede.
Mas o turista convidado pelo estado é arrogante e não percebe quase nada disso. Não percebe que seu futuro está já naquelas fotos, sua cabeça é a próxima a ser arrancada pelos sertanejos em resistência. A foto das cabeças no museu é atualizada na foto das cabeças na frente da igreja, agora fotografada por celulares. A violência existe. Ela não é celebrada no filme, mas está longe de ser tratada com o pudor das esquerdas pós-anistia. Quando é necessário proteger a comunidade, são utilizados todos os meios necessários: tecnologia tradicional, com seus psicotrópicos que enchem a gente de Bacurau de coragem, tecnologia moderna, com seus celulares, vídeos e caixas de som, e a violência. O botânico da cidade, depois de atirar nos invasores para defender sua casa, pergunta para sua agressora ensanguentada: você quer viver ou morrer? Bacurau quer viver, que sobreviver à morte que está à espreita.
Canudos resistiu e foi derrotado. Bacurau, desta vez, não. Michael, o antagonista de olhos azuis é claro sobre isso no fim do filme: é só o começo. É preciso estar atento e forte para este aviso. A vitória, temporária que seja, de Bacurau, se deve sobretudo por sua falta de ingenuidade. É preciso gritar como a Lunga: estamos sendo atacados! Parece óbvio, mas não é. Às vezes vemos nossos adversários se armando, passando decretos que permitem a compra de armas militares por civis, matando os nossos, cada dia mais um, expulsando a gente da terra, discursando cada vez mais abertamente sobre a necessidade de nos matar e nossa reação, muitas vezes, é esperar a próxima eleição, a boa vontade dos órgãos do estado, a boa intenção dos que se armam, etc. (Em uma cena rápida, vê-se na televisão a notícia de que as “execuções públicas” voltaram a acontecer no Largo do Anhangabaú. Bacurau, como se sabe no começo do filme, acontece em um futuro próximo). O povo de Bacurau não foi vítima dessa ingenuidade.