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Para André Nogueira
As discussões prévias sobre Divino Amor, novo filme de Gabriel Mascaro, lançado no mês passado no Brasil, apontavam uma distopia com a tomada cultural e política dos evangélicos no país. Os evangélicos têm sido tratados no Brasil de maneira parecida com a maneira com que o Ocidente trata a China. É um grupo grande, em ascensão, que inspira medo (o que eles pensam? Como eles vivem a vida?) e, sobretudo, que é desconhecido.
Qualquer pessoa que tenha frequentado uma igreja evangélica ou tenha parentes evangélicos sabe que, como em todas as grandes generalizações, muito pouco do que se diz sobre “os evangélicos” vale para todos. A maior parte, aliás, nem mesmo se considera “evangélico”. Consideram-se membros da sua congregação específica, com seus ritos e doutrina próprios.
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O evangélico é o outro do catolicismo e, portanto, de grande parte do imaginário religioso e político no Brasil. Divino Amor poderia ser um filme que surfasse na onda do momento, um tipo de distopia 198- Deus é o Senhor em que o estado laico dá espaço para uma tecnoteocracia.
Ainda que algumas imagens apontem para isso, sobretudo no aspecto biopolítico (o foco social na função reprodutiva da mulher, a substituição do Carnaval, o “Drive Thru” de pastor, a ortodoxia da igreja da protagonista).
Mascaro, felizmente, vai bem mais longe e, ao invés de marginalizar ou caricaturar ainda mais um grupo já exotizado o bastante no campo das artes e do debate político progressista, ousa tomar o ponto de vista de uma destas pessoas. Ao invés de reduzir a espiritualidade, o aspecto místico que toda religião verdadeira contém, ao invés de seguir a fórmula marxista preguiçosa de que a religião é o ópio do povo, Mascaro explica o funcionamento deste ópio, que seja, seu prazer, seu conforto, sua sedução.
Sem dúvida, haverá quem diga que se trata de profanação, de sátira, de crítica psicanalítica sobre a repressão da religião e o retorno explosivo do gozo reprimido. A voz do narrador, no entanto, desautoriza esta leitura.
Não se trata, como fez Pasolini em Salò ou os 120 dias de Sodoma, de uma denúncia da hipocrisia moralista do fascismo católico e do catolicismo fascista. Há algo disso, mas o filme vai além. Há beleza. Há uma sexualidade linda, mística. Mascaro leva sua obra a sério e aceita ser levado para lugares não óbvios, aceita seguir as tormentações e esperanças da protagonista e acaba encontrando belezas e verdades não redutíveis completamente à sombra ameaçadora de figuras como Pastor Marco Feliciano e a burocracia estatal.
A crença na possibilidade de um milagre (e qualquer militante atento deve saber que isso é outra palavra para revolução) e a fidelidade a esta crença produzem um enredo nada óbvio e uma reflexão profunda sobre as possibilidades do presente, tanto dos Evangélicos, como do Brasil em geral.
A seita da qual faz parte a protagonista também é diferente. Longe da ridicularização barata, da mera exotização, no estilo Porta dos Fundos, Divino Amor mostra uma espiritualidade viva, distinta. Nós já vimos algo dela. O foco no amor, na caridade, a celebração do corpo (ainda que sob a fachada da procriação), a comunidade.
Há algo de um cristianismo militante, em suas variadas versões através da história (A última tentação de Cristo, de Martin Scorsese, vem à mente, a Teologia da Libertação também).
Há algo também de profundamente pagão, um tipo de evangelismo mais sincrético. O retorno do Messias não é através de uma mãe virgem, mas de uma orgia, com muitos pais - sem pai. O Messias brasileiro, filho de mãe solteira, que nasce sem nome, para não ter medo, como diz sobre si esse Messias, revelado narrador no fim do filme.
Divino Amor é ficção científica, mas também é um filme de nostalgia. Fredric Jameson explica a aparente contradição. O teórico da literatura vê filmes como Star Wars e De volta para o futuro menos como filmes apontados para o futuro do que filmes nostálgicos, representando relações das gerações anteriores (dramas familiares e político no contexto conservador estadunidense da década de 1950, por exemplo) apenas com uma roupagem mais cintilante.
Há algo também disso em Divino Amor. O belo visual de neon tropical aponta, sem dúvida, para as raves futuristas, mas, também para os grandes bailes (com luz negra, fumaça e música eletrônica) dos anos 70 e a música pop dos anos 80.
Socialmente, as questões que o filme coloca também são uma versão “futurista” de dilemas que apareceram nessa época. A libertação sexual dos 1970, o vanguardismo artístico anteposto ao conservadorismo católico-militar durante a Ditadura. A semente da crise dos relacionamentos, crise em que estamos afundados neste momento e um dos temas principais do filme, com seus divórcios, reaproximações etc., repensada ali no momento de seu plantio (relações familiares, de gênero, de orientação sexual, monogamia etc).
Do presente, além das tendências protofascistas, ele também se apropria de certa estética ainda a se sedimentar como novo estilo nacional. Quando surgirá uma pintura, uma música, uma arquitetura evangélica no Brasil que não seja apenas reprodução dos templos-shopping importados dos EUA?
A possibilidade é real e a arte católica no Brasil (das igrejas barrocas de Ouro Preto à Igreja da Pampulha de Niemeyer) é prova disso. No filme, surge um pouco ironizada, um pouco sonhada a possibilidade dessa estética. Há uma “grandiosidade” evangélica em gestação ao mesmo tempo em que já envelhecida. A língua tem um vernáculo ornamental, típico mesmo da leitura de textos do Velho Testamento, mas falado no sotaque humano dos interiores do Brasil. Tudo é um pouco cênico, um pouco forçado, falta a pobreza das igrejas evangélicas reais. Ainda assim o desejo de grandeza está lá, o estilo nouveau riche, com suas flores, sua pompa que mistura festa de 15 anos com baile de formatura. O corpo místico, penetrado por anjos e pelo espírito santo no seio da comunidade.
Assim como em De volta para o futuro o protagonista volta no tempo e ajuda a resolver um conflito no relacionamento dos pais que levaria a sua própria concepção, em Divino Amor a questão da liberdade sexual em oposição ao misticismo religioso recebe um tratamento diferente. Ao invés de uma oposição estéril, uma nova relação entre ambos. No espaço mais conservador surge uma sexualidade reinventada. No seio da monogamia mais militante, há um espaço de poliamor e cuidado coletivo. (A ciranda na Festa Junina, com seu casamento encenado, não guarda também um tipo de vingança não monogâmica na troca animada entre os casais?) Isso não como sonho, como proposta futura, mas como lembrança também do passado. Lembrança de que a mera procriação, passa necessariamente pela beleza e pelo mistério do sexo.
Em Divino Amor, Mascaro repete e aprofunda um feito de seu filme anterior, Boi Neon. Ele renaturaliza a mãe tornada “imaculada” por dois milênios de Cristianismo. As mães transam, gozam, dão à luz. Nem o sexo mecânico e despersonalizado da Indústria Cultural, nem o sexo espiritualizado e sem carne dos conservadores, toda a potência mística, em sua potência transcendental e de alteridade, que o sexo envolve.
É um caso raro de filme que pode dar prazer e fazer pensar tanto libertários, quanto religiosos, sem contradição necessária. Pelo contrário, essa figura sumida, o militante do amor (na esteira do que pensa um cristão comunista como Alain Badiou), seria o espectador ideal para este filme.