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A invenção da fotografia, como técnica, mas também como novo gênero artístico, impactou as mais diversas áreas da sensibilidade humana. A possibilidade de paralisar o tempo, de revelar os gestos mais discretos, até então invisíveis para o olho humano, sua possibilidade de micro e macro traduziu para o nervo humano reinos até então reservados aos seus habitantes, as bactérias e as estrelas. Dentre as chamadas seis artes estabelecidas pela tradição grega, nenhuma sofreu um impacto tão brutal pela invenção da fotografia (e, simultaneamente, do cinema) do que a pintura. Se nunca se tratou apenas da mera representação objetiva - como as tendências da pintura do começo do século XIX já apontavam, pelo menos nas obras de mais relevância artística - a invenção de uma técnica que com um pouco de tempo e uma bugiganga poderia reproduzir com alta fidelidade um curto espaço de tempo, terminava de acelerar a tendência da pintura de abrir mão da mera representação em busca de outras possibilidades do olhar e da mão.
Esse exemplo é instrutivo para pensar sobre a chegada de uma oitava ou nona (quem ainda conta?) arte, que penetra na sensibilidade contemporânea com tanta intensidade quanto os guardiões do cânone tentam ignorá-la: os videogames. Sim, muito já se falou disso e, com razão, pouco de relevante. Os grandes jogos, as obras com potencial artístico, se se puder falar assim, ainda não chegaram, embora a todo momento, surja, aqui e ali, uma inovação técnico-estética que lance os mais entusiastas a proporem a chegada do Ésquilo, do Bach, do Eisenstein dos videogames. Para referir novamente ao passado do século, a mesmíssima discussão se deu com a chegada do cinema que teve inícios científicos, de curiosidade popular, até o surgimento de suas primeiras grandes obras. Mais interessante, no entanto, do que definir taxonomicamente o que é ou não é arte no reino do videogame (obra de arte completa, no sentido, wagneriano, ou melhor, ainda mais completa, no limite do simulador total, talvez mais obra completa do que de arte, se se puder especular) seria refletir sobre o impacto do videogame na sensibilidade e, consequentemente, nas relações artísticas contemporâneas. Como no exemplo da fotografia, que produziu impacto gigantesco na pintura, seria caso de perguntar, como as características formais da forma videogame influenciam na produção e recepção de outras obras de arte?
O cinema e as séries são um campo fértil para refletir sobre isso. Tratam-se de gêneros artísticos produzidos para equipamentos e sentidos semelhantes aos do videogame. Fica de fora, claro, a interatividade, mas não absolutamente, como o último episódio de “Black Mirror” deixa claro (episódio, aliás, construído bebendo profundamente da estética e de certos aspectos formais dos videogames). Não é segredo que o audiovisual, no modo de construção de suas narrativas, tanto se apropriou, quanto transformou procedimentos literários. A voz interna do personagem vira “voice over”, o fluxo de consciência talvez se traduza com cortes rápidos, a memória involuntária em “flashbacks”, mas também é fato que muito da visualidade, dos planos longos, dos diálogos, da câmera lenta se introjetaram nos romances da segunda metade do século XX, sem demérito para eles, pelo contrário, com ganho de novas técnicas formais. Algo semelhante parece estar acontecendo na relação do audiovisual com os videogames. A forma artística anterior bebe em funcionalidades, truques narrativos, estruturas temporais inteiras que até então, dada a materialidade distinta das mídias, eram invisíveis ou desnecessárias para os outros gêneros artísticos. A adorável série “Russian Doll” (2019), que estreou semana passada no Netflix, criada pela comediante Amy Poehler, pela roteirista Leslye Headland e pela atriz-protagonista Natasha Lyonn, talvez contenha alguns destes sintomas de um surgimento possível do videogame como obra de arte. O enredo é simples: uma jovem que morre repetidas vezes e volta sempre ao mesmo momento em sua noite de aniversário. Há um adendo, no entanto: ela se lembra exatamente dos eventos de cada morte. Nisso, já se está longe das repetições trágicas e infernais típicas como no mito de Sísifo (que como Nietzsche e Camus, por exemplo, mostraram, não está muito distante da realidade do mundo moderno do trabalho), mas também de abordagens mais cômicas como a do filme “Feitiço do tempo” (1993). “Russian Doll” mistura algo de ambos, mas traz uma novidade formal semelhante à de alguns jogos de videogame: o protagonista não sabe o “objetivo” do jogo. A cada morte, a protagonista Nadia aprende algo sobre sua situação e seus perigos, isso em sentido amplo. Só pode avançar com a narrativa se resolver certas questões a partir de pistas (o luto da mãe, a relação com a namorada etc). Como um jogador do difícil “Dark Souls III” (2016), jogo em que inimigos e armadilhas estão escondidos nos lugares mais improváveis fazendo com que o jogador só avance a partir do aprendizado com as mortes recorrentes, Nadia morre em certos espaços e ocasiões que aprende a evitar para que a história prossiga. Passa, por exemplo, a pegar a escada de incêndio para evitar a escada principal. Como em um jogo no estilo RPG (“Chrono Trigger”, de 1995; “The Elder Scrolls V: Skyrim”, de 2011), com mecanismos de evolução do personagem complexos, dependentes de mecanismos específicos, rotas variáveis e finais alternativos, Nadia progride tentando entender as forças que comandam seu mundo e as regras para chegar ao final da narrativa. Como em jogos multiplayer, que permitem dois ou mais jogadores, no meio do seriado o espectador descobre a existência de Charlie, “jogador número dois”, preso no mesmo loop temporal que Nadia, e, ao que tudo indica, fundamental para que a história se resolva. A busca lenta de ambos pelas “regras do jogo” é conhecida de qualquer jogador que pule o tutorial e se jogue em um novo universo. Se a experiência de jogador conta, cada jogo, cada bom jogo, de maneira muito semelhante às obras de arte mais interessantes, estabelece os critérios de sua jogabilidade, e os mais interessantes entre eles são justamente os que exploram novas possibilidades, que, a partir das possibilidades materiais de som, vídeo, console, controle, inventam e reinventam mecanismos técnico-formais. “Pac-Man”, “Tetris”, “Super Mario”, “Street Fighter II”, enfim, cada grande jogo, representante maior do gênero e fundador de um novo, para parodiar Walter Benjamin sobre a obra de arte. (O que não tem relação direta nenhuma, necessariamente, com maior qualidade de gráficos ou de hardware, assim como a extensão ou variedade vocabular não faz, necessariamente, um bom texto).
“Russian Doll” parece retomar alguns mecanismos populares e inovadores dos videogames e experimentar com eles em uma narrativa audiovisual. Isso é tão explícito em alguns momentos da série que não seria surpreendente se, em uma virada “Black Mirror”, Nadia, que não por acaso é justamente designer de games, se descobrisse personagem de algum jogo ou de alguma simulação avançadíssima, personagem de algum drama psicológico (ao modo do jogo de RPG “Persona” ou do jogo de plataforma “Celeste”) em que o “objetivo” do jogo fosse ensinar à personagem a importância do autocuidado e do cuidado alheio. Algo semelhante havia sido feito, com qualidade muito distinta, no filme “No Limite do Amanhã” (2014), um filme de ação que é quase réplica de jogos como “Call of Duty” ou “Doom” e que tem como único elemento formal interessante, justamente, sua apropriação da repetição, do “respawn”, da repetição com acúmulo típica dos videogames. Feliz ou infelizmente, as criadoras preferiram não explicar o mecanismo “sobrenatural” que prendia Nadia e Charlie naquela repetição: tanto faz, a verossimilhança se mantém, Kafka, afinal, nunca explicou nada. O importante, como todo gamer sabe, é a jornada do jogo, a experiência, o aprendizado daquele mecanismo específico (e, claro, para os mais obcecados, jogar tudo de novo, buscando cada pequeno segredo, final alternativo, “easter egg”etc.).
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