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A exposição J. Carlos - Originais, que está no IMS de São Paulo desde 17 de setembro e tem previsão de permanecer até 26 de janeiro, surpreende pela falta de cuidado com ilustrações racistas espalhadas ao longo do salão dedicado à obra de J. Carlos. Importante chargista, ilustrador e designer gráfico brasileiro, Carlos é também representante do racismo tradicional da branquidade brasileira em sua representação gráfica estereotipada e animalizante de negros, japoneses e outros grupos não brancos do Brasil da primeira metade do século XX.
Misturados às belas tipografias art déco, às inovações editoriais e às ilustrações do surgimento da cidade grande no Brasil, com seus meios de transporte e prédios modernos, pessoas negras aparecem animalizadas, com traços grotescos, reproduzindo em legendas e balões de fala lugares comum do racismo e colocadas como obstáculo à modernização do país.
Evidentemente, museus e galerias não devam restringir a exposição de obras históricas com cunho racista. É importante como testemunho histórico que o país olhe de frente seu passado racista (com tantos impactos no seu presente), tantas vezes camuflado com a ideologia da branquidade tropical onde tudo se resolve com o charme malemolente da miscigenação. Mas se é importante que saibamos que revistas, jornais, rádio e televisão sempre tiveram papel ativo na segregação racial e na manutenção da exploração promovida por um grupo social, por outro lado, há de se ter cuidado na exposição desse material. Não é possível, terminando a segunda década do século XXI, depois de tantos debates acalorados e importantes, como aquele acerca, por exemplo, do racismo na obra infantil de Monteiro Lobato e os cuidados em sua aplicação nas escolas, que um espectador caminhe pelo IMS de São Paulo e passe por uma porção de figuras abertamente racistas sem que tenha havido um cuidado de curadoria na problematização e contextualização histórica daquelas manifestações. Ou se coloca isso na entrada, já no texto de apresentação, ou a curadoria de Cássio Loredano, Julia Kovensky e Paulo Roberto Pires corre o risco de ser conivente com a normalização, mais uma vez, do racismo na sociedade brasileira.
No site dedicado à exposição ou no panfleto de divulgação, por exemplo, não se vê nada além dos belos traços em que os brancos europeizados são tratados ou caricaturizados de maneira terna e infantil (nada próximo da representação negra ou japonesa). Na exposição do piso superior, o visitante encontra um aviso na porta de entrada: atenção, há representação sexual e de violência, recomendada a não entrada de menores de 16 anos etc. Já em um salão em que a população negra é representada com traços de macaco, em que em uma divertida tirinha uma menina negra é devorada por uma onça, perseguida por aves selvagens e depois “salva” (ou seria melhor dizer, comprada como escrava) por uma heroína branca, não há qualquer aviso: é a normalidade do país.
É mais grave ainda saber que a pequena parte da exposição dedicada à problematização do racismo do ilustrador nem mesmo fazia parte da exposição original. Em um cantinho já quase no fim do salão, em abas viradas para a parede, não para o resto da exposição, há um texto curto, mas importante que fala abertamente do racismo do ilustrador, acompanhado de peças ainda mais declaradamente racistas como a que ataca parlamentares negros e que defende abertamente o branqueamento. (Em uma das ilustrações, negros idosos dizem felizes algo como: pelo menos tivemos a sorte de ter netinhos loirinhos). Segundo relatos de pessoas que trabalham no local, esta sessão foi adicionada posteriormente e apenas a partir da pressão dos próprios monitores e funcionários do IMS.
As ilustrações abertamente racistas de J. Carlos deveriam, sim, ser expostas como exemplo da disputa política racial que sempre houve no país. Basta uma folheada rápida nos Almanaques do autor para verificar que (ao contrário do que defende gente como Ali Kamel, diretor de jornalismo da Rede Globo) nunca houve democracia racial no Brasil e que a situação trágica da população negra não é fruto apenas de um abandono histórico, mas de uma postura ativa e militante antinegra exercida frequentemente pelos meios de comunicação, de então e de agora, e também por instituições culturais. Se J. Carlos foi inovador do ponto de vista de sua intervenção gráfica nas revistas e jornais brasileiros, é importante ressaltar em uma exposição dedicada à sua obra seu cunho também abertamente racista, sob o risco da passação de pano histórica. Uma curadoria que não leva em conta isto ou é inocente ou é também racista.
É de se perguntar, por exemplo, se o IMS costuma receber alunos em idade escolar, em plena formação, e se algum destes alunos é negro. Qual o impacto no imaginário deste jovem ao se ver e ver aos seus representados desta maneira? Conseguirá ele chegar até o fim do salão onde, em um “cantinho da problematização” (provavelmente pensado, convenhamos, como resposta antecipada a textos como este), ele descobrirá que está tudo bem e que a sociedade não pensa mais assim? Mas ela realmente não pensa? O descuido desta exposição, em uma instituição tão importante com um cuidado na curadoria e exposições tão importantes para a cidade, coloca isso em questão.