à memória de anna kraus
[caption id="attachment_236" align="alignleft" width="317"] Que esse lugar seja para sempre um grito de desespero e um aviso para a humanidade, onde os nazistas assassinaram cerca de um milhão e meio de homens, mulheres e crianças, principalmente judeus de vários países da Europa.[/caption]Ainda do ônibus já se pode ver as cercas de arame farpado e as linhas dos trens que levavam os prisioneiros dos nazistas - judeus, comunistas, homossexuais, ciganos - para seu último destino em vida. "O trabalho liberta", diz o letreiro em alemão à entrada do campo. A névoa, o silêncio profundo, as árvores secas: tudo evoca desolação e morte, e no entanto é apenas mais uma parada no roteiro turístico pela Polônia.
A transformação das ruínas do campo de concentração de Auschwitz em ponto turístico é eticamente controversa, e faz parte, embora em um grau diferente, do mesmo fenômeno do "turismo de experiência" que leva tantas pessoas curiosas às periferias brasileiras. Entre preservação da memória coletiva e transformação da violência em fetiche capitalista, há uma linha tênue e difícil de ser definida - ainda mais quando não sabemos ao certo quem tem o direito de defini-la.
O agora memorial de Auschwitz foi libertado no dia 27 de janeiro de 1945, há 70 anos. Mais de 7 mil pessoas foram resgatadas pelo exército soviético. Sete décadas depois e a ferida no seio da Europa ainda está longe de ser cicatrizada - após os atentados de Paris em janeiro, em que quatro judeus foram mortos, a comunidade judaica por aqui sente-se novamente alvo da intolerância religiosa.
Durante o dia de hoje e todo o mês de janeiro, os meios de comunicação europeus estão fazendo retrospectivas, buscando depoimentos dos sobreviventes, fotos inéditas, documentos secretos, enfim, reforçando a memória coletiva sobre o que foi o Holocausto, ou a Shoah, com um alegado objetivo pedagógico: lembrar para não repetir.
A fórmula, entretanto, não é assim tão simples de ser colocada em prática. Lembrar como, lembrar de que, lembrar de quem? Em Auschwitz, a ênfase do memorial é dada à percepção da quantidade de mortos e da eficiência e racionalidade na condução dos assassinatos.
Mas, para repetir essa noção de "máquina da morte", que matou pessoas em escala industrial, as vítimas são novamente despersonalizadas - em vez de biografias, objetos: malas, pares de óculos, chapéus, sapatos, cabelo. Quantos? Muitos. De quem? Não sabemos. É uma característica do genocídio e da execução em massa: a violência simbólica continua depois da morte, na despersonalização da memória, na redução dos mortos a uma lista, a uma crença, a uma etnia, na subtração da biografia. As vítimas passam a ser definidas somente em função da violência que sofreram, e todas as suas outras experiências humanas são apagadas pelo fardo dessa violência. Davi, Isac, Ana deixam de ser pessoas como eu e você, com sonhos, família, pequenas vitórias e pequenas derrotas, pessoas com nuances, e passam a ser apenas nomes, quando muito, ou números, ou «os judeus».
E então, se eu não compartilho a mesma crença eu não sou capaz de sentir empatia pelo que aconteceu - eu não me sinto ofendida pelo crime contra «os judeus» porque eu não sou judia. Por outro lado, se eu entendo o crime cometido contra Ana como um crime cometido contra um ser humano, sendo eu também um ser humano, foi um crime cometido contra mim, e a minha capacidade de sentir compaixão é muito maior - claro, guardadas as devidas proporções. Esse "raciocínio de solidariedade" é a base do humanismo que se desenvolveu na Ocidente no pós-guerra e que deu origem à declaração universal dos direitos humanos.
O problema da desumanização também acontece no sentido inverso: se eu enxergo Hitler, o exército alemão e todos os colaboradores do nazismo como monstros não-humanos ou como a encarnação do mal, eu me supervalorizo como alguém incapaz de cometer os mesmos atos que eles, me julgo moralmente superior. Mas é aí que está o cerne da dificuldade em tratarmos o Holocausto em profundidade: cada um de nós é potencialmente capaz de representar os dois papéis, vítimas e algozes, alternada ou simultaneamente. Enfrentar a catástrofe (shoah) da Segunda Guerra Mundial é assumir que somos capazes de (e podemos ser responsáveis por) atrocidades terríveis e que precisamos construir socialmente sólidos princípios éticos que nos impeçam de nos matar uns aos outros e de destruir o planeta.
É do sequestro da identidade individual das vítimas de genocídio que fala Wis?awa Szymborska, poeta polonesa que viveu sob o nazismo e o stalinismo, ganhadora do Nobel de literatura em 1996, no poema O campo de fome nos arredores de Jas?o*, uma biografia imaginada do milésimo primeiro morto que não mereceu lugar na História:
Escreva isto. Escreva. Com tinta comum.
No papel comum: não lhes deram de comer,
Todos morreram de fome. Todos. Quantos?
É um prado grande. Quanta grama para cada um? Escreva: não sei.
A história arredonda os esqueletos para zero.
O mil e um ainda é mil.
Aquele um é como se nunca tivesse existido:
Feto imaginado, berço vazio,
A cartilha aberta para ninguém,
O ar que ri, grita e cresce,
A escada para o vazio que corre para o jardim,
Lugar de ninguém na fileira.
A memória anterior à prisão é apagada, o milésimo primeiro só ganha existência física novamente no campo, como se só no campo e para o campo tivesse existido, figurante de um drama de cinema, do horror, da natureza, da morte, do silêncio, da paisagem:
E se fez carne, aqui, no prado em que estamos.
E ele silencia como a testemunha comprada.
Ao sol. Verde. Ali pertinho o bosque
Para mascar a madeira, sorver de sob a cortiça
Uma porção da vista cotidiana,
Até que se fique cego. No alto, um pássaro,
Que passava pelas bocas sua sombra
De asas nutritivas. Abriam-se as mandíbulas,
Batia o dente no dente.
De noite no céu reluzia a foice e ceifava agosto para os pães sonhados.
Vinham voando as mãos dos ícones enegrecidos,
Com cálices vazios entre os dedos.
No espeto de arame farpado
Balançava um homem.
Cantavam com terra na boca. Uma canção linda
Sobre a guerra que atinge direto o coração.
Escreva: que silêncio aqui.
Sim.
A construção da memória (ou narrativa) coletiva de um povo não pode se dar às custas da aniquilação da memória individual de cada integrante desse povo, com todas as suas nuances, ambivalências e contradições: com toda a sua humanidade concreta e única.
Das muitas lições deixadas por Auschwitz, esta ainda precisa ser aprendida.
* Tradução de Piotr Kilanowski
**Todas as imagens são de arquivo pessoal: Polônia, jan/2014.