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Na última quinta-feira (24), aconteceu a quarta audiência pública no Senado para debater a SUG nº 15, de 2014, que regula a interrupção voluntária da gravidez dentro das doze primeiras semanas de gestação pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Quero destacar a fala da ativista feminista nicaraguense Maria Teresa Blandón, que comentou as consequências terríveis acarretadas pela proibição total do aborto no Nicarágua. A fala foi disponibilizada, na íntegra, no blog da Frente Nacional Pela Legalização do Aborto e pode ser lida abaixo:
Brasília, 24 de setembro de 2015.
Texto de Apresentação ao Congresso
Msc. María Teresa Blandón Gadea.
Senhoras e senhores senadores, senadoras, deputados e deputadas
Agradeço a oportunidade de compartilhar a difícil situação que vivem as mulheres do meu país Nicarágua, em consequência da penalização do aborto terapêutico, que estava vigente desde 1879 mas foi eliminado pelo Congresso da República em reforma sancionada pelo atual presidente Daniel Ortega, em 2006. Essa penalização total aconteceu num contexto eleitoral em que os principais partidos em disputa eram objeto de descrédito frente aos eleitores em razão da corrupção e de falta de respostas efetivas para os altos índices de pobreza do país. A penalização total do aborto foi usada por esses atores como estratégia para difundir na sociedade um falso discurso de defesa da vida.
No debate sobre a reforma de nada valeram os argumentos apresentados pela Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia, cujos argumentos científicos e éticos irrefutáveis defendiam a necessidade de manter o aborto terapêutico na legislação, para proteger a vida e a saúde das mulheres, em um país que apresenta altas taxas de mortalidade materna (125 para cada 100 mil nascidos vivos), onde 28% do total de gestações ocorrem em meninas e adolescentes menores de 18 anos e onde a cada ano mais de 1500 meninas menores de 14 anos vivem gestações que representam quatro vezes mais risco de morte.
Quais são as principais consequências da penalização total do aborto na Nicarágua?
Depois da penalização absoluta do aborto, cresceu a porcentagem de mortes obstétricas indiretas. Entre 2012 e 2013, 47% das mortes maternas poderiam ter sido evitadas se a interrupção da gravidez em caso de risco tivesse sido praticada. Nesse período, as estatísticas também revelam causas de morte que não apareciam antes da penalização absoluta, tais como a gravidez ectópica. A muitas mulheres foi negado ou retardado o tratamento contra o câncer, para supostamente favorecer o desenvolvimento do feto. É conhecido, por exemplo, o caso de uma mulher de 27 anos que só iniciou seu tratamento de câncer após a pressão de organismos de direitos humanos nicaraguenses e do Sistema Interamericano de Direitos.
Também há casos de atendimento tardio em hospitais a mulheres em situação de aborto incompleto, que morreram porque o pessoal médico não realizou a intervenção necessária por medo de ser acusado de praticar um aborto. Finalmente, mulheres diagnosticadas com gestação de feto anencéfalo foram obrigadas a levar a termo essas gestações que inevitavelmente terminam com a morte do feto e que implicam risco de saúde, além da tortura que significa viver uma situação como essa.
Quais são as implicações éticas dessas situações nas quais o pessoal médico obriga as mulheres a passarem por elevado grau de sofrimento e risco, inclusive de morte? Quais são os fundamentos que levaram os legisladores e o Presidente da República a definirem legalmente que as mulheres com gestação de risco não são titulares do direito à vida e que devem morrer para gerar uma nova vida às custas de sua própria existência?
A penalização absoluta do aborto nos diz que estamos frente a um Estado que não reconhece o direito à vida das mulheres, especialmente das que vivem em condições de pobreza. De um estado que cria situações que distorcem o sentido da maternidade (dar vida sem perder a própria, cuidar e desfrutar da nova vida gerada) e convertem a gravidez em um fator de medo. A penalização absoluta nos diz que estamos frente ao Estado “carrasco” e não, como deveria ser em teoria, um Estado que garante os direitos humanos de cidadania, sem nenhuma forma de discriminação.
Também é preciso analisar a penalização absoluta do aborto em relação à gestação que resulta de violência sexual. Entre 2009 e 2012, a Polícia Nacional reportou 2.790 denúncias de estupro contra meninas menores de 14 anos. Dados de 2013 do Instituto de Medicina Legal sobre 5.516 vítimas de violência sexual informam que 6 de cada 10 delas eram menores de 13 anos. De acordo com o Ministério da Saúde, entre 2009 e 2012 foram registrados 6.404 partos de meninas entre 10 e 14 anos. Essas meninas estão sendo obrigadas pelo Estado a levar a termo gestações que colocam em risco a vida, saúde e desenvolvimento integral.
Diante dessa grave situação de violação dos Direitos Humanos das mulheres, organizações feministas, organismos independentes de direitos humanos, a Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia, entre outros, temos sustentado uma campanha permanente em defesa do aborto terapêutico. Entre outros efeitos essa campanha é o que explica por que a grande maioria de médicos de ambos os sexos que prestam serviços em 12 hospitais públicos estejam de acordo com a necessidade de restabelecer o aborto terapêutico para salvar a vida
Continuamos demandando à Corte Suprema de Justiça uma resolução que confirme a ilegalidade da lei que penaliza o aborto, pois ela contradiz a Constituição e os marcos internacionais de Direitos Humanos. Por sua parte, o Comitê Cedaw, o Comitê de Direitos Humanos, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Comitê contra a Tortura recomendaram ao Estado da Nicarágua: revisar a legislação relativa ao aborto com o objetivo de suprimir disposições punitivas, evitar penalizar profissionais da medicina no exercício de suas responsabilidades profissionais, garantir o tratamento imediato das mulheres que precisam de atendimento médico, proporcionar serviços de qualidade para o tratamento das complicações derivadas de abortos realizados em condições perigosas, e adotar medidas para ajudar as mulheres a evitar a gravidez indesejada.
A Nicarágua constitui um claro exemplo de como o Estado pode invocar a proteção da vida como um fetiche, e provocar, com leis injustas, a morte de milhares de mulheres que já vivem em condições de pobreza, discriminação e violência. E, para terminar, quero compartilhar a reflexão da teóloga católica María López Vigil que vive na Nicarágua, para quem diante de uma gravidez não desejada o aborto é sempre terapêutico porque possibilita que as mulheres gozem de um estado de saúde integral.
Foto de capa: Reprodução / Facebook