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Um dos primeiros assédios sexuais que sofri aconteceu quando eu tinha por volta de 6 anos de idade. Era de manhã bem cedo e eu estava sentada na calçada da casa da minha avó, quando um homem desconhecido desceu da bicicleta e veio sentar ao meu lado. Não lembro de tudo o que ele disse, mas me recordo claramente da pergunta que ele fez: "você já tem cabelinhos lá?". Alguns anos depois, um amigo de 17 anos do bairro onde morava me mostrou seu pênis e me pediu para colocar a mão. Eu tinha cerca de 9 anos de idade.
Antes e depois desses dois casos, outras situações de assédio aconteceram. Mas o que todas elas possuem em comum, além do constrangimento e do fato de eu ainda ser uma criança, era o sentimento de que eu não tinha como escapar. Era uma sensação de congelamento e de medo, como se eu não tivesse nenhuma outra escolha. Ninguém jamais havia conversado comigo sobre assédio sexual e eu não sabia como agir.
Nos últimos dias, com a explosão da campanha #PrimeiroAssedio lançada pelo Think Olga, passei a refletir sobre as diversas facetas do assédio sexual e do abuso contra garotas e a importância de debatermos honestamente sobre pedofilia e machismo. É fato que a pedofilia, enquanto transtorno mental, existe. Há pessoas, homens e mulheres, que sentem atração sexual por crianças, muitas vezes exclusivamente, e que chegam a praticar estupros e a consumir material pornográfico com menores de idade. No entanto, não temos um estudo global aprofundado sobre pedofilia e suas diversas formas de se manifestar e fazer vítimas.
Por isso, não é possível afirmar, cientificamente, se os homens que me assediaram eram ou não pedófilos. Também não dá pra saber se os milhares de homens citados em casos de violência sexual com a hashtag #PrimeiroAssedio eram pedófilos. Porém, precisamos utilizar esses relatos e informações como fonte de reflexão e debate. Afinal, será que todos esses milhares de homens são mesmo pedófilos no sentido patológico do termo?
Uma coisa que não tem sido suficientemente debatida a respeito da pedofilia é a sua carga social e a contribuição do machismo para que ela exista. E isso é algo que vale para crianças de ambos os sexos, de acordo com as expectativas sexistas que a sociedade têm sobre elas, já que enquanto as meninas são vistas como presas, os meninos são encarados como pequenos garanhões. O resultado disso é que mesmo garotos vítimas de pedófilos e pedófilas têm dificuldade para encontrar ajuda, pois a sociedade considera "natural" que meninos se envolvam sexualmente com mulheres mais velhas ou com temáticas sexuais.
No caso das garotas, nossa cultura tem praticado a sexualização precoce de diversas maneiras e muitas delas passam despercebidas. Os concursos de beleza onde garotinhas recebem bronzeamento artificial, depilação e maquiagem são um bom exemplo. Além disso, os milhares de depoimentos de mulheres que sofreram algum tipo de violência sexual quando ainda eram crianças deixam evidente que o comportamento pedófilo tem acontecido em números muito altos e esses casos não chegam à mídia, dando-nos a impressão de que a pedofilia não é algo assim tão recorrente e, portanto, é exclusividade de "monstros", de pessoas extremamente "distorcidas" e "doentes".
A verdade está muito longe disso. Muitos dos homens que assediaram as garotinhas dos relatos vivem vidas consideradas bem normais pela sociedade. Eles não são obviamente "desajustados" e nem vivem trancados num quarto escuro cavando pornografia ilegal no submundo da internet. Pelo contrário, muitos são casados, têm filhos, trabalham em empregos de prestígio ou simplesmente vivem suas rotinas comuns, sem despertar suspeitas. É possível que esses homens nem lembrem ou pensem muito a respeito das coisas que fizeram; talvez realmente achem que uma garota de 10 anos de idade pode ser sexualmente provocante e que seus atos contra ela estão justificados por isso.
É aí que o machismo se relaciona com o comportamento pedófilo, pois mesmo homens que não estão conscientes da questão e que não estão deliberadamente procurando imagens de crianças sem roupa online podem ser pedófilos justificados pelo machismo. A menina que tinha o corpo "desenvolvido demais" é a clássica vítima ideal para esses indivíduos. A partir dessa lógica, algumas vítimas de pedofilia são vistas pela sociedade como menos vítimas do que outras e, por isso, a tolerância ao assédio contra elas é maior. Será que o machismo não tem criado pedófilos por conveniência? Há, afinal, homens que enxergam o corpo feminino como propriedade masculina, como um objeto passivo e disponível que pode ser assediado e tocado, independente da idade e mesmo que legalmente seja proibido. O mesmo vale para os garotos vítimas de assédio ou estupro; pela nossa cultura, os homens sempre têm que responder ao sexo e muitos de nós conhecemos meninos que foram levados pelo próprio pai para serem iniciados sexualmente por prostitutas.
O fato é que a questão da pedofilia é muito complexa e precisamos de mais pesquisas científicas a respeito, assim como precisamos de mais interlocução socialmente crítica, que se preocupe em analisar o papel do sexismo nessa equação. Sem esse compromisso, sem que essa responsabilidade seja assumida por toda a sociedade, não há como garantir a segurança das crianças. Enquanto o machismo for a regra, o corpo das meninas for considerado um direito dos homens e a masculinidade estiver relacionada a um comportamento de caça sexual, nenhuma criança ou adolescente está realmente protegido para que se desenvolva e chegue à idade adulta sem ter sido vítima da violência sexual.
Por fim, algo é bastante certo: não há como fugir dessa realidade. As mulheres que contaram seus primeiros traumas causados pela violência sexual e pelo comportamento machista estão na casa dos milhares; a campanha #PrimeiroAssedio está marcando a história neste exato momento, nos provocando a refletir, questionar e analisar a pedofilia e o machismo de maneira séria e responsável. Podemos não ter todas as respostas prontas, mas é nosso dever buscá-las.
[ Saiba como denunciar o assédio a crianças na internet ]
Foto de capa: Reprodução / Facebook