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[caption id="attachment_845" align="alignleft" width="250" caption="Ana Martins Marques. Foto: Folha de São Paulo"][/caption]
A poeta mineira Ana Martins Marques estreou em livro em 2009, com A Vida Submarina (Editora Scriptum), que reunia os poemas premiados em 2007 e 2008 naquele que era o mais antigo prêmio literário do Brasil, o Prêmio Cidade de Belo Horizonte (suspenso em 2011). Saudado na Revista Bravo!, na Folha de São Paulo e em outros veículos, A Vida Submarina teve um impacto inaudito para um poemário de estréia (há alguns poemas, nem de longe representativos do que é a riqueza do livro completo, aqui). Seu segundo livro, Da arte das armadilhas, foi lançado no ano passado pela Companhia das Letras e é o objeto dos apontamentos que seguem.
A poesia de Ana Martins Marques com frequência constrói analogias entre o mundo exterior e o mundo interior do sujeito poético (ou do próprio texto poético) que, no momento em que se realizam, se dissolvem, como em “Em Branco”, da primeira coletânea:
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Dizem que Cézanne
quando certa vez pintou um quadro
deixando inacabada parte de uma maçã
pintou apenas a parte da maçã
que compreendia.
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É por isso
meu amor
que eu dedico a você
este poema
em branco.
.
O mecanismo heurístico da analogia, como forma de compreensão do mundo, é estabelecido na primeira estrofe através de uma das marcas estilísticas da poesia de Ana, o retrato bruto de um objeto no mundo. A segunda estrofe, que conclui a operação analógica trazendo o foco para dentro do sujeito poético (e do próprio texto), se esvazia no momento em que se realiza: o poema em branco é o equivalente analógico da parte da maçã que Cézanne compreendeu, poema que, portanto, tece uma imagem para abordar o amor culminando na confissão da impossibilidade de compreendê-lo. Este movimento é comum na poesia de Ana. A analogia, a símile, nos reconfortam, oferecem uma imagem concreta do seria a experiência: o ilustre correlato objetivo que queria Eliot. Mas, no momento mesmo em que a correlação se completa, redondinha, ela se esvazia de forma frustrante: o poema em branco só realiza a sua isomorfia com a maçã de Cézanne às custas de abdicar de sua possibilidade de dizer qualquer coisa sobre seu tema.
Da arte das armadilhas continua essa tendência visível em A Vida Submarina, a de mapear a experiência através do retrato bruto dos objetos. Onde, em Adélia Prado, veríamos longas dissertações sobre as coisas, em Ana vemos instantâneas que agarram o objeto ali onde ele ilumina uma zona da experiência à primeira vista não relacionada a ele. A primeira parte do poemário, “Interiores”, é um passeio pela casa, no qual, com frequência, a banalidade do objeto se choca, no último verso, com um assustador que o transcende, como em “Faca”, terceira parte de um poema dedicado aos talheres (Sua fria elegância/ não escamoteia / o fato: / é ela que melhor se presta/ ao assassinato) ou “Fruteira” (Quem se lembrou de pôr sobre a mesa/ essas doces evidências/ da morte?).
[caption id="attachment_846" align="alignright" width="157" caption="Capa de "Da arte das armadilhas""][/caption]
Mas é na segunda parte do poemário, epônima, que se desdobra a dicção já observada em A Vida Submarina, como no extraordinário “Caçada”, um tributo à capacidade da linguagem poética de embutir o complexo no simples:
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E o que é o amor
senão a pressa
da presa
em prender-se?
.
A pressa
da presa
em
perder-se
.
O jogo de aliterações (PRessa / PResa / PRender-se), a cada verso, nos remete, circularmente, ao mesmo som, como circular é o movimento do sujeito amoroso descrito pelo poema, entregando-se ao prender-se (ao perder-se) próprio do amor. Tudo na sonoridade deste poema é notável. A passagem de pressa a presa, com a subtração de uma letra e a correspondente mudança fonológica (para falar em fonetiquês: de uma fricativa côncava dental surda [preSSa] a outra fricativa côncava dental, só que sonora [preSa]) anuncia a inversão de fonemas que fecha o texto com um aparente oxímoro: a presa tem pressa, ao mesmo tempo, de pREnder-se e pERder-se. Amor, essa paradoxal condição em que o estar preso – supostamente, então, fixo, localizado, parado – é um perder-se – em condição, portanto, de errante, vagante. A duplicidade se replica no próprio título, Caçada, palavra que admite uma acepção ativa, substantiva (a presa caça, ao fim e ao cabo, sua condição) e uma acepção de particípio, adjetiva (a condição de toda presa: ser caçada). O fato de que a minha paráfrase prosaica soe tão patética ante a clareza cristalina do texto não é senão um tributo à sua perfeição como poema.
Então: o caçador está preso/ à presa, como dizem os últimos versos do livro, fechamento do poema que lhe dá título. A arte das armadilhas é dialética: no momento em que o leitor começa a perceber seu mecanismo, desvenda-se o fato de que o poeta tampouco está imune a ela.