Por Ronaldo Ribeiro, de Nova Iorque
"Historicamente, através da literatura e das artes, o 'Oriente' - visto através das lentes dos ocidentais - se tornou distorcido e degradado de maneira que qualquer outra coisa, qualquer 'Outro', que não seja aquilo que nós ocidentais conhecemos como familiar é não apenas tido como exótico, misterioso, e sensual mas também inerentemente inferior."
Edward Said explicando o conceito de Orientalismo, na narrativa de Najla Said
Najla Said. Filha de uma libanesa e de um palestino. Batizada na Igreja Episcopal Anglicana. Educada entre judeus nas escolas de elite de Nova Iorque. Fluente em vários idiomas. Formada na prestigiosa universidade Princeton. Atriz, dramaturga e escritora.
Filha de Edward Said, o ativista político palestino que deu visibilidade à luta e ao sofrimento do seu povo, intelectual que dialogava com Yasser Arafat e o Rei Hussein, querido entre atores, como Omar Sharif, amigo de escritores e intelectuais como Susan Sontag e Noam Chomsky.
Edward Said, autor do livro "Orientalismo", obra fundadora dos estudos póscoloniais.
Najla Said, autora do livro "Looking for Palestine" (Procurando a Palestina).
Fórum - Fale um pouco sobre a peça que você está participando e que acaba de estrear em Nova Iorque, "Comédia dos Sofrimentos"?
Najla Said - A peça trata de uma jovem mulher egípcia, de uma família abastada, educada nos melhores colégios, com os privilégios de classe média alta, que após uma série de encontros com várias pessoas de formações distintas percebe que tinha sido completamente indiferente diante da miséria e do sofrimento dos egípcios de menos sorte. A peça também tematiza o inicío dos movimentos da Primavera de Abril, e de uma certa forma antecipa as complicações e os abusos de poder por parte dos militares no Egito.
Fórum - Como você escolhe os temas dos seus textos dramáticos e da sua prosa, e como define o tratamento estético dos seus trabalhos?
Najla Said -Tenho como objetivo tocar as pessoas para que despertem para outras realidades que são bastante diferentes das nossas. Exatamente como na peça "Comédia dos Sofrimentos", quero que as pessoas se tornem mais informadas sobre situações de vida muitíssimo adversas em lugares do mundo em que muitas vezes não prestamos muita atenção.
Fórum - Foi assim também com a peça que escreveu "Palestina"?
Najla Said - A motivação foi a mesma, sem dúvida. Queria dividir com o público meus sentimentos de solidariedade, angústia e raiva dentre tantos outros quando senti e vi na minha frente o sofrimento daqueles que vivem na Palestina, nos territórios ocupados de Gaza e na Cisjordânia. No entanto, a peça Palestina foi um monólogo extremamente pessoal, eu queria simplesmente me perder no meu próprio personagem, aprender a lidar com meus medos e fantasmas do passado…
Fórum - Falando do livro que você acaba de publicar, "Looking for Palestine" (Procurando a Palestina). Parece-me que um elemento central das suas memórias é o sentimento de instabilidade e de aflição por você ter tantos pontos de referência em sua identidade. Dito de outra forma, o seu trabalho parece comunicar a dificuldade de se situar socialmente por ser a um só tempo palestina, libanesa, americana, conviver em uma comunidade judia e ser filha de um intelectual tão famoso.
Najla Said - É verdade, não foi e não é fácil negociar com todas as minhas facetas identitárias. E apesar de meu pai ter sido sempre muito afetuoso, um excelente exemplo e um grande educador, a fama dele e de suas ideias me levou sempre a viver em sua sombra. Fiz terapia desde muito jovem. Acho que o livro também me ajudou a entender um pouco mais quem sou, aceitar que não só eu mas todos nós somos feitos de muitas partes que são aparentemente contraditórias, irreconciliáveis. Percebi o óbvio, que simplesmente não há resposta para a pergunta "quem sou eu"? Simplesmente sou aquilo tudo junto.
Fórum - No seu livro você menciona que a sua primeira viagem para Gaza, em 1992, com apenas 18, foi transformadora, que realmente alterou a forma com que você via o Oriente Médio. Pode explicar?
Najla Said - Até aquela viagem eu estava preocupada com ser bonita o suficiente, inteligente o suficiente para me adequar ao que eu achava que era o padrão judeu novaiorquino das jovens magras, de olhos azuis, bem educadas e intelectualizadas. Tornei-me anorexica por isso, só olhei para mim mesma por algum tempo.
A experiência em Gaza me fez abrir os olhos para a dor dos outros, para uma população que vive rotineiramente sobre pressão, uma prisão a céu aberto, sem uma série de condições básicas de alimentação e higiene que todos nós achamos que são universais. Não são.
Fórum - Em sua descrição de uma viagem para o Egito, você menciona passeios com o ator Omar Sharif, com o Rei Hussein, e um encontro no palácio real com Yasser Arafat. Intelectuais de peso como Susan Sontag e Noam Chomsky frequentavam a sua casa. Como o fato de estar exposta desde tenra idade a estruturas de poder, e também por ser filho de um proeminente intelectual e ativista político, acabou por moldar a sua própria forma de ser ativista?
Najla Said - Apesar de tocar em temas extremamente polêmicos, não sou dada a polêmicas, prefiro tocar as pessoas pelos sentimentos. Não me envolvo diretamente com associações de ativistas políticos. Sou uma artista que comunica temas políticos e preocupações políticas para tentar tocar as pessoas.
Fórum - Isso está conectado com a escolha do tom e da voz narrativa bastante neutros do livro?
Najla Said - Sem dúvida, daí a narrativa extremamente pessoal e quase cândida do meu livro.
Fórum - Pode comentar a seguinte passagem: "Quando eu escuto a palavra Palestina, escuto a voz do meu pai. Mas eu não sei o que isso significa, porque não é um lugar para mim. Eu não a conheço bem, não tenho conexão com ela. Mesmo meu pai não era mais conectado com o lugar propriamente dito, com o local geográfico - para ele, e também para mim, a Palestina era uma ideia, um lugar que representava a luta pela igualdade e pelos direitos da humanidade."
Najla Said - Desde muito jovem estou procurando a Palestina, tentando entender de onde meu pai veio, tentando entender o Líbano, de onde minha mãe veio. Cresci visitando esses lugares, escutando estórias sobre eles. Mas fundamentalmente sou de Nova Iorque, e tenho partes importantes da minha educação e da minha personalidade que são marcadas por traços estrangeiros do Oriente Médio. Por isso, com o passar dos anos, percebi que mais importante do que encontrar quem sou era necessário me comover, me preocupar e agir diante da dor dos outros.