Tão logo a prefeitura de São Paulo revogou o aumento na tarifa de ônibus, escrevi o artigo “A Passagem abaixou, agora falta abrir a planilha de custos e muito mais” https://revistaforum.com.br/brasilvivo/2013/06/18/a-multidao-que-se-recusa-coisa-a-ser-coisa/, em que propunha a suspensão da licitação para concessões para o transporte público em São Paulo (há alguns dias suspensa pelo prefeito Fernando Haddad), a abertura da Planilha de Custos do Transporte, além da convocação de uma Conferência Democrática sobre Mobilidade (conforme proposta do dep. Ricardo Berzoini). Agora a Câmara de Vereadores aprova uma CPI para apurar a planilha de custos do transporte que, no entanto, em manobra parlamentar, manterá o controle da CPI sob maioria governista. Em que pese a manobra, cabe transformar o instrumento da CPI em mecanismo para abertura de um dos segredos mais bem guardados pelas administrações municipais: a planilha de custos do transporte público.
Como, em minha atividade de gestor público já tive experiência no contato com o setor de transporte público (conforme relato publicado em outro artigo: https://revistaforum.com.br/brasilvivo/2013/06/11/a-proposta-de-passe-livre-no-transporte-publico-e-justa-coerente-e-viavel/), acredito que posso oferecer uma contribuição sobre o assunto.
Neste setor, lamentavelmente, há uma íntima relação entre financiamento de campanhas eleitorais, corrupção na administração pública, alto custo das tarifas e ineficiência no serviço. Isto acontece porque há uma simbiose entre a natureza do negócio, origem do lucro e decisão política. A rigor, o ideal seria que o serviço fosse operado exclusivamente pelo Poder Público, mas como também há ineficiência na gestão pública do serviço, uma medida minimamente indispensável seria mudar a forma de remuneração dos concessionários do transporte público. No modelo atual as empresas de transporte são remuneradas pela combinação de dois fatores: a) custos fixos (operação e manutenção do sistema de transporte); b) custos variáveis (Índice de Passageiros por Quilometro- IPK). É desta combinação que se chega ao valor final da tarifa e este é o principal fator que impede a melhoria na qualidade do transporte público.
Por que? Como parte da remuneração é resultante da quantidade de passageiros por quilometro, quanto mais passageiros no ônibus, maior o lucro. Esta lógica perversa resulta em atrasos nas partidas de ônibus (principal motivo para multas no sistema), pois as concessionárias buscam compactar passageiros (atualmente a secretaria de transportes de SP admite até 6 passageiros por metro quadrado!) em menos viagens e em percursos aparentemente irracionais de linhas de ônibus (quando várias linhas ocupam um corredor de ônibus, concorrendo entre si, ou linhas em caminhos tortuosos e demorados). A continuar neste sistema de remuneração das concessionárias, por mais que aumente o valor da passagem, a qualidade do serviço nunca irá melhorar.
Qual alternativa? Remunerar as concessionárias por viagem, independente da quantidade de passageiros e desvincular a remuneração de qualquer forma de arrecadação própria de tarifa. Toda a arrecadação seria recolhida por uma empresa pública, que só depois faria o pagamento às concessionárias , que receberiam por “Ordem de Serviço” (quantidade de viagens contratadas) estabelecida conforme o interesse público (qualidade, conforto e rapidez). Por esta forma de remuneração as empresas não teriam mais razão em baixar a qualidade para aumentar o lucro, pelo contrário, pois seriam remuneradas somente pela quantidade e qualidade das viagens.
Mas esta não é a única medida que deveria ser abordada em uma CPI honestamente comprometida com o interesse público. Há que estudar o cálculo da Planilha de Transporte e localizar as fontes de sobre-lucro das empresas concessionárias. Em linhas gerais, a composição da tarifa se divide nos seguintes itens:
a) Remuneração de Pessoal (motoristas, cobradores, manutenção, administração);
b) Combustíveis;
c) Manutenção (Peças, lubrificantes e serviços)
d) Amortização de Capital (recuperação dos custos de investimento e capital)
e) Lucro.
Quem observar esta planilha vai perceber que o sub-item “lucro” é o que tem o menor impacto e menor remuneração. Ocorre que o verdadeiro lucro está nos quatro primeiros itens:
a) Remuneração de Pessoal – Quando, sobretudo motoristas, são submetidos a jornadas extenuantes e, freqüentemente, recebem menos que os direitos trabalhistas legalmente assegurados. A planilha aponta um custo total de remuneração do trabalho, mas, em muitos casos, as empresas pagam outro, bem menor, normalmente com a conivência de dirigentes sindicais;
b) Combustíveis – O custo apontado na planilha é o custo de varejo, de venda ao consumidor, ou até mais, no entanto, todas as concessionárias contam com fornecimento próprio, adquirido diretamente nas refinarias, em valor bem menor;
c) Manutenção – Além de utilizar o mesmo procedimento dos combustíveis, com sobre-faturamento nos preços, há outro artifício: a realização de serviços aquém do estabelecido no contrato de concessão. Por exemplo: Todos os ônibus precisam sair das garagens limpos e dedetizados; se no lugar da higienização, que inclui uso de água e desinfetantes, eles forem apenas limpos (varridos, espanados), haverá uma grande economia não contabilizada; se, no caso de ônibus em linhas da periferia distante, a limpeza acontecer a cada dois ou três dias, a economia de pessoal será ainda mais significativa (estamos falando de milhares de operações diárias). E tudo resulta em ônibus sujos, alguns até com baratas subindo pelas paredes.
d) Amortização de Capital – A aquisição de instalações, equipamentos e ônibus é toda financiada com linha pública de crédito, via BNDES, com juro subsidiado e com carência para início de pagamento. O custo destes financiamentos e outros investimentos, todo ele, é absorvido no cálculo da planilha. Ou seja, quem paga todo o custo de investimento em transporte público são as pessoas que pagam a tarifa do transporte. Senão pela ética, ao menos pela lógica, ao final este patrimônio deveria ser público, pois foi pago exclusivamente pelo público; porém, é incorporado unicamente ao patrimônio dos donos das empresas. Quanto aos usuários, que pagaram diariamente estes investimentos, assim que houver novos investimentos, eles terão que pagar tudo novamente, e novamente...
E assim se extrai a Mais-Valia da Multidão de usuários de transporte público, seja em São Paulo ou em qualquer outra cidade do Brasil, manipulando planilhas, explorando o trabalho, superfaturando custos, cortando serviços, reduzindo qualidade, impedindo racionalização de linhas e evitando novas idéias (como o ônibus a gás, que deveria ter sido implantado em São Paulo no início dos anos 1990, reduzindo custos e poluição ambiental). E depois as pessoas não conseguem compreender os motivos da revolta da Multidão.
Mesmo tendo sido resultado de uma “manobra parlamentar”, que seja bem vinda a CPI da Planilha dos Transportes, mas que ela esteja a serviço do interesse público e que abra seu trabalho para acompanhamento de uma auditoria cidadã da composição de custos. Se o trabalho for sério e competente será possível uma nova redução, entre 10 a 20%, no custo final das tarifas. Assim, que todas as cidades do Brasil abram os seus custos de transporte, já!