Masculinidades, eleições e distopia

Estamos em momento histórico que nos coloca poucas alternativas: iniciamos a ruptura com as estruturas arcaicas ou a distopia colonial vai se consolidar no Brasil

Escrito en COLUNISTAS el

Centenas de análises de conjuntura que tentam explicar a derrota sofrida pela esquerda nas eleições 2020 foram/ estão sendo publicadas nas redes sociais, blogs, portais e até no impresso.

A diferença dos textos do primeiro para o segundo turno é que, após o término da eleição e com a derrota da esquerda a crítica, já um tanto enfadonha e profundamente equivocada sobre o “excesso de identitarismo”, ressurgiu das trevas. E claro, sempre escrita por homens brancos e heterossexuais. Não é implicância, é fato.

Mas sobre isso já escrevi. Quero encaminhar a crítica para outra questão, no caso, sobre o gênero de 90% dos autores dos textos que circularam e ainda estão circulando pelas redes. A saber: homens cis. Brancos. Classe média. Quero cruzar o gênero dos autores com a questão da derrota. Mas pretendo articular o fato de que a masculinidade que opera sobre todas as vidas é, ao lado do capitalismo, a herança distópica dos tempos coloniais.

Poucas análises que li partiam do pressuposto da derrota, por exemplo, “perdemos por isso e por aquilo, temos de pensar em alternativas a partir do…”. O que mais tenho lido é sobre a importância do PT para o campo da esquerda, sobre a impossibilidade de tal partido não ter um candidato para cargos executivos nas principais cidades, estados e à presidência da República. Concordo com essa tese e, ao mesmo tempo, acho que não temos que gastar energia com a tal da “Frente Ampla”, simplesmente não vai acontecer por conta da organização do nosso sistema político-partidário e por conta da cláusula de barreira. Mas essa é outra questão.

Percebo que há uma dificuldade imensa em se aceitar uma derrota que, a meu ver, foi estrondosa, e não apenas em termos numéricos, mas no que diz respeito à disputa por uma outra sociedade. Se aceitamos que partidos como DEM e PSDB meio que retornaram das trevas, se aceitamos que o PSD cresceu e que o MDB continua enorme e espalhado pelo Brasil, é um sinal de que os valores progressistas não estão convencendo.

Essa dificuldade em aceitar e assimilar a derrota se dá pelo fato de que, não apenas a estrutura do Brasil como um todo, mas as dos partidos de esquerda ainda são profundamente masculinas, logo ocupadas por homens, estes desde muito cedo são educados para a vitória, a conquista e a dominação. A derrota, desde sempre, é ensinada como algo dos fracos; fraqueza é um valor que deve ser extirpado do mundo masculino/tradicional.

Derrota e fraqueza são dois valores geralmente associado às mulheres e às LGBT. Seus corpos, sempre pensados como lânguidos são sinônimos de fraqueza e derrota. É assim que funciona a estrutura normativa. E é por isso que a derrota não encontra espaço. Não se trata de um devir derrotista.
Assimilar a derrota e assumir que estamos no limbo passa por um abandono completo dos modos de vidas organizados pela masculinidade tradicional.

Percebam: quantas mulheres foram chamadas para fazer grandes análises sobre o pós-eleição? Quantas lideranças negras ocuparam os principais meios de comunicação para dar a sua contribuição sobre o futuro da esquerda no médio e longo prazo? Quantas LGBT foram convidadas para escrever sobre a derrota da esquerda?

A tecnologia de gênero também condiciona a narrativa sob a qual vivemos. Neste caso, o dia seguinte é dia de erguer as bandeiras e sair à luta…, mas lutar contra o que? Para conquistar o que? O mundo masculino normativo não sabe viver diante do vazio da derrota. Para que o campo da esquerda possa novamente encantar e oferecer um outro mundo possível, é necessário abandonar a masculinidade tradicional, pois, esta é um dos motores de funcionamento do modo de produção capitalista: o homem conquista, trabalha, produz e reproduz. Essa lógica precisa ser quebrada.

Obviamente não se trata de algo assim, da noite para o dia. Abandonar as estruturas tradicionais masculinista envolve um longo processo de discussões, novos programas, ou seja, envolve a vontade de propor um novo paradigma, no qual abandonaremos a vergonha da derrota e com esta aprenderemos; envolve até mesmo abandonar a categoria “homem” e “heterossexualidade”, bem como “homossexualidade”, “bissexualidade”, assim como o binarismo de gênero “masculino” e “feminino” no que diz respeito ao prisma construtor das políticas. Envolve reconhecer privilégios históricos.

Ao mesmo tempo isso não está tão longe do nosso horizonte, basta olharmos as várias candidaturas LGBT, feministas e negras eleitas às câmaras municipais em todo o Brasil. E vale destacar: foram eleições que não ficaram restritas aos centros urbanos – tese sempre levantada para desqualificar tais candidaturas -, foram eleitas candidaturas em todas as regiões do país e boa parte delas das periferias.

Voltando para ao início: as análises sobre a derrota insistem em dizer que “não foi tão ruim assim”, “vejam os números” porque estão alicerçadas em mundos estruturados em valores arcaicos. A esquerda foi derrotada. Os métodos que antes funcionavam – pensado, em sua maioria, por mentes masculinas/ heterossexuais para um mundo masculino e também heterossexual – caducaram.

Para voltarmos a encantar politicamente é necessário enterrarmos os valores masculinistas. É preciso, de fato, iniciarmos uma profunda discussão e construção programática que envolva as questões de raça, classe, orientação sexual e gênero. Se metade da população é negra – 54% de acordo com o IBGE -, metade dos espaços políticos precisam assim estar ocupados; se as mulheres somam 51% da população brasileira, assim devem estar nas estruturas dos partidos de esquerda. Ninguém mais aguenta olhar para o quadro branco e masculino pendurado nas salas de reuniões. O Brasil não estão ali. Essa ficção histórica a gente deixa para os de sempre, ou seja, a direita, a construtora e herdeira direta da mentalidade colonial/casa grande.

Homens não podem chorar, não podem perder, é isso que precisa acabar. Viver a derrota como um luto, é necessário, sofrer é libertador, o que nos torna prisioneiros é a masculinidade tradicional e colonial que insiste em produzir máquinas que não podem perder. Além de tudo, é preciso mudar de ideia, outro fator que a estrutura normativa ensina que não é legal, que é coisa de gente sem rumo, sem decisão, sem organização, sem ambição… notem, tudo isso gira em torno da mentalidade masculina e esta age sobre todas nós. Ninguém escapa.

Porém, algumas vidas e corpos estão acostumados a ser expulsos dos espaços, a amargar derrotas e, por conta disso, a sempre construir novas formas de hackeamento do sistema e isso a mentalidade masculina não saber fazer (e também não permite ou trata com desdém), pois, desde criança o pequeno macho é educado que tudo está pronto para ele, basta ir adiante, com força e muitas certezas que tudo vai acontecer, um mundo de vitórias, mas, no geral, ele vive um mundo de derrotas, mas não as vivencia e por isso adoece ou insiste na mesma ideia – ainda que ela nunca se concretize – até a morte. Isso também é o capitalismo.

A masculinidade tradicional é a distopia colonial. Esse modo de pensar e organizar a vida possui uma longa tradição, se impôs, ou melhor, envenenou todas as sociedades com que teve contato: destruiu cosmologias inteiras na América; fundou o sistema escravagista; o feudalismo; o mercantilismo e o capitalismo moderno e o temperou com o liberalismo e depois o neoliberalismo. Ainda vivemos sob o espírito do corpo branco colonizador e sua mentalidade e só iremos adiante quando rompermos com este paradigma colonial. Caso contrário, viveremos em círculos destrutivos.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum