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[caption id="attachment_139732" align="alignnone" width="700"] Mapa do bairro do Cruzeiro, em Belo Horizonte (MG) – Foto: Arquivo pessoal[/caption]
“Dizem uns que a vida é um perde e ganha.
Eu digo que a vida é uma perdedeira só, tamanho é o perder”.
(Conceição Evaristo, em “Becos da Memória”)
Não é nenhuma coincidência a derrota de Conceição Evaristo na Academia Brasileira de Letras e o incêndio do Museu Nacional na mesma semana. Nossa civilização foi cunhada sob a éfige da exclusão e do esquecimento. Um país inteiro construído, literalmente, sobre os escombros da memória dos outros.
Conceição Evaristo cresceu na favela do Pindura-Saia em Belo Horizonte. No golpe de 50 anos atrás a maioria das pessoas que ali moravam foram expulsas, incluindo a família da escritora. O livro Becos da Memória, escrito nos anos 80 mas publicado apenas em 2006, narra a luta e principalmente as perdas desta comunidade. Se não fosse por Evaristo estas histórias estariam completamente perdidas, enterradas junto com o entulho dos barracos demolidos.
E tão importante quanto a demolição de uma comunidade pobre é o simbolismo do que se construiu ali. Milhares de pessoas passam pelas ruas Minas Novas, Outono, Albita e Alfenas no bairro do Cruzeiro, em Belo Horizonte, sem ter a menor ideia de quem vivia aí há apenas duas gerações. Da mesma forma que nós não temos nenhuma noção de quem morava naquelas terras antes da descoberta de pepitas de ouro em 1697. Ou quem vivia aí antes da construção da nova capital em 1897. Memória, para quê memória?
Mas falemos de questões um pouco mais atuais, talvez mais frescas na lembrança. Como mostra o mapa que ilustra este texto, onde antes existia a Pindura-Saia foram construídos centenas de edifícios para a classe média Belo Horizontina, muito provavelmente financiados pelo BNH entre 1965 (data da remoção) e 1980, parte do que chamamos milagre brasileiro, um enorme motor de desigualdade dos anos 70. Conceição Evaristo foi posta na rua para que famílias de classe média morassem ali com juros subsidiados pelo estado. Ali também foi construído um mercado público e uma universidade privada, que por sinal aplaudiu ano passado ao candidato fascista vice-lider das pesquisas.
E o que mais foi construído nas terras inclinadas do morro do cruzeiro onde um dia existiu a favela onde morou Conceição Evaristo? IBGE, INCRA, OAB, Associação de Magistrados e até o meu Instituto dos Arquitetos do Brasil. Desde Pereira Passos (e provavelmente desde muito antes) que se repete a mesma história: destrua-se qualquer rastro de resistência, queime-se a memória dos bárbaros, proíba-se qualquer menção aos hereges para que a modernidade se imponha.
A modernidade do século XVI eram braços nativos cortando pau-brasil. A modernidade do século XVII eram braços africanos moendo a cana de açúcar. A modernidade do século XVIII eram braços africanos e afro-brasileiros separando o ouro do cascalho nas bateias, enquanto os braços das negras faziam todo o trabalho doméstico. A modernidade do século XIX eram braços negros, mulatos e brancos pobres colhendo café, enquanto os braços das negras faziam todo o trabalho doméstico. A modernidade do século XX eram braços negros e nordestinos carregando latas de cimento nos ombros, enquanto suas mulheres e filhas faziam todo o trabalho doméstico. A modernidade do século XXI são outros braços, netos e bisnetos dos que carregaram cimento, dirigindo Uber e operando interfones, enquanto suas mulheres e filhas ainda fazem todo o trabalho doméstico.
A modernização não existe sem a colonização. Não é um efeito colateral. Não adianta chamar nossa modernidade de incompleta ou desigual. A modernidade é isso: a queima da memória de um povo vendido a preço de aumentos do poder judiciário. A modernidade, da forma como implementada nos últimos 5 séculos é um beco sem saída, vai nos queimar a todos.
A saída, se existir, está nas frases de Conceição Evaristo insistindo em memorializar o Pindura-Saia. A saída está no perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro, desenvolvido ali mesmo, no programa de pós-graduação em antropologia do Museu Nacional. Somos o resultado de um holocausto contra os ameríndios. Somos o resultado da escravidão. Entre os objetos queimados no domingo à noite estavam gravações de línguas indígenas não mais faladas, e o trono do rei de Daomé. Não basta exterminar, é preciso queimar a memória como uma inquisição sem fé.
Um dia, no futuro longínquo, o perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro vai superar o cartesianismo da modernidade como visão paradigmática de mundo. Num futuro bem mais próximo, Conceição Evaristo será enaltecida como a grande escritora brasileira que é, para inveja de tanta gente irrelevante de fardão.
E os historiadores do futuro vão se lembrar do dia em que o Brasil desgovernado e enlouquecido deixou arder a maior coleção do hemisfério sul como nós nos lembramos de Girolamo Savonarola queimando Boticelli em 1494.