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Quando a direita vulgar diz que quer um Brasil mais unido, sem divisão de classe, de cor, de gênero etc., ela não quer dizer que irá pôr fim a essas distinções, no sentido de que todos terão as mesmas oportunidades. O que pretende é produzir um discurso capaz de encobrir as diferenças.
Trata-se da boa e velha formação discursiva, onde se entende que o objeto é criado pelos diversos enunciados que o nomeiam e o explicam. Como na ciência médica analisada por Michel Foucault, as formações discursivas estão menos preocupadas com os objetos e conceitos que dominam que com o estilo que usa para percebê-los ou desenvolvê-los.1
Mas a questão é: o que torna possível determinadas formações discursivas? Ou, para o que nos dedicamos a refletir nessa oportunidade, o que possibilitou a ascensão dessa visão reacionária sobre as minorias?
O tratamento que se quer dar às minorias, no ponto de vista da direita conservadora, certamente não é algo que passou a existir nos últimos tempos. Mas, sem dúvida, a ascensão de governos como os do leste europeu e o de Donald Trump, acabou por, paulatinamente, retirar do submundo a formação discursiva que entende as minorias como um problema para ascendê-la a níveis oficiais, já que os próprios governantes a enunciam.
Após a derrota do nazismo, o discurso contra as minorias ficou obscurecido e passou a ser adotado por diversos grupos neonazistas que surgiram nos quatro cantos do mundo. Nasceram seitas esotéricas, satanistas, igrejas, skinheads, bandas de black metal e até uma utopia ariana localizada no alto da faixa de terra de Idaho, no Noroeste Pacífico dos EUA, onde o reverendo Richard Butler, em 1974, dizia: “o ódio será nossa lei e a vingança, nosso dever”.2
Em outros casos, foi cultivada uma espécie de filosofia de ódio niilista que se baseia no O anti-cristo de Nietzsche, no qual o filósofo alemão critica a simpatia que o cristianismo possui pelos “mal-constituídos e os fracos”.3 A isso se misturou um darwinismo social que visava a sobrevivência da raça mais forte.
Nesse submundo circulou, portanto, um discurso elitista que execrava os Direitos Humanos, a igualdade, a democracia, valorizando uma concepção na qual “as mulheres cozinham e cuidam da casa” e onde “não se deve misturar as raças. A Bíblia diz isso”.4 Além disso dizia que o comunismo, a psicanálise, a ascensão das ciências sociais e o Estado de Bem estar social eram um complô judeu para pôr fim ao homem branco heterossexual.5
Depois da crise de 2008 e dos impactos da guerra no Oriente Médio que gerou milhares de refugiados, esse discurso ganha uma maior ressonância na política populista europeia. Os EUA foi pelo mesmo caminho com a ascensão de um presidente que deixa claro sua aversão aos latinos.
Por mais que digam não ser nazistas ou fascistas, a história revela claramente que se trata de um discurso defendido por grupos de extrema-direita que se declaravam simpatizantes das ideias de Hitler. No Brasil esse discurso nazista que deprecia o indígena, o negro, como o de Bolsonaro e de seu vice, quer ganhar espaço. Alienados pela aversão à corrupção, muitos, principalmente a juventude (cabe lembrar que essa faixa etária foi o alvo preferido dos grupos neonazistas que se apoderaram da ficção científica, do black metal, do movimento skinhead e dos hooligans para disseminar a sua ideologia), acabam sendo seduzidos pela estética da zoeira, usada como isca, para, assim, filiarem-se ao ódio que tal discurso emana.
O discurso dessa direita vulgar que se faz vítima da Nova ordem Mundial assemelha-se em muitos aspectos aos ditos nazistas. O comunismo, a diversidade de gênero e étnica, corrupção, crime, o controle de armas, tudo parece ter sido cunhado pela mesma mão para destruir a sociedade. As palavras de Matt Koehl, figura emblemática do Partido Nazista Americano que durou de 1962 a 1963 e fundador do Partido Nacional-socialista do Povo Branco, mostram a semelhança. Ele critica a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial e o mundo que se sucedeu: “Eles alteraram a demografia nacional e nos impingiram a integração, transporte miscigenado, as quotas para minorias (...) Eles nos deram a permissividade, as drogas, o sexo seguro e as ruas inseguras e o controle de armas [...] Eles nos deram ‘estilos de vida alternativos', sodomia, Aids, imundícies, perversão, caos, crime, corrupção...”.6
Agora vejamos algumas propostas que podemos ler no programa do PSL: “políticas de esclarecimento à população, que visem a conscientização a respeito dos males provocados pelo comunismo e socialismo; (...) é necessária a revogação do Estatuto do Desarmamento e a criação de condições para que os cidadãos possam ter a posse de armas de fogo, se assim o desejarem; (...) combate à censura, ao constrangimento e aos desequilíbrios morais e sociais, decorrentes do discurso “politicamente correto”; (...) combate à apologia da ideologia de gênero; (...) combate aos privilégios decorrentes de “quotas” que resultem na divisão do povo, seja em função de gênero, opção sexual, cor, raça, credo; (...) combate frontal à corrupção endêmica instalada no Brasil, em todas as suas formas, níveis e esferas...”7
Portanto, vemos na direita vulgar um desejo de recusar o nazismo adotando, por sua vez, aspectos defendidos e herdados dele. Embora encontremos alguns pontos liberais genéricos, como a diminuição do tamanho do Estado e a proteção intransigente à democracia e à liberdade do cidadão, o documento do partido se destaca por não apresentar uma proposta prática para os problemas materiais do país, priorizando, tal como os neonazistas, os aspectos morais.
Lembra a moral laica que Sartre afirma ser contrário por ela querer “eliminar Deus com o mínimo de danos possível”. O existencialista deve não só desacreditar em Deus mas, também, negar todo o sistema moral que o cristianismo criou, pois “desaparece toda e qualquer possibilidade de encontrar valores num céu inteligível”.8
Se esse grupo reacionário pretende de fato distanciar-se do nazismo, precisa mudar o discurso, ou assumir sua simpatia à tal ideologia extremista, revelando a sua verdadeira face.
1 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. P. 36.
2 CLARKE-GOODRICK, Nicolas. Sol negro. São Paulo: Madras, 2004. P.314.
3 Id. P. 274.
4 Id. P. 314.
5 Id. P. 298.
6 Id. P. 30.
7 https://www.pslnacional.org.br/
8 SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo.Trad: Rita Correia Guedes. p. 7. Disponível em: http://stoa.usp.br/alexccarneiro/files/-1/4529/sartre_exitencialismo_humanismo.pdf