De cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo suas necessidades.[1] Louis Blanc
Quando o trabalho não for somente um meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os seus aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva, só então será possível (...) inscrever em suas bandeiras: de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades. [2]
A essência humana não é uma abstração inerente a cada indivíduo. É, em sua realidade, o conjunto das relações sociais. [3] Karl Marx
Estas ideias são simples, porém, muito mal compreendidas. O critério que inspira os socialistas é que cada pessoa deve cooperar, contribuir, colaborar conforme suas aptidões e competências, habilidades e disposição na produção da riqueza social. E deve poder consumir conforme as suas necessidades. Isso seria possível em função da abundância de bens e serviços que uma comunidade socialista desenvolvida será capaz de produzir. Seria o início de uma nova era da civilização. Esse é o objetivo do programa. O programa é uma estratégia de longo prazo. Não é incomum que essa esperança seja desvalorizada como sonhadora, uma romantização ingênua, uma fantasia irrealizável. Seria irrealizável, impraticável, impossível. Ser de esquerda é acreditar que não se trata de uma ilusão, mas de um projeto, uma aposta. O capitalismo não é meritocrático A injustiça do mundo que nos cerca não repousa em critérios meritocráticos. Porque não há igualdade de oportunidades. A diferença de talentos e a variedade de capacidades não têm relação direta com o lugar que cada ser humano ocupa nas sociedades estratificadas em classes. Não há nenhum mérito em nascer em uma família burguesa, proletária ou de classe média. Não há nenhum valor em nascer na Nigéria ou na Noruega, na Grécia ou na Alemanha. Isso é acidental. Não deveria ser o suficiente para definir o destino de uma vida. O marxismo afirma que a humanidade é igual e desigual, porque diversa. Porque compartilhamos, essencialmente, as mesmas necessidades. Mas, ao mesmo tempo, as diferenças existem. Ser socialista significa reconhecer que os seres humanos são distintos uns dos outros. Possuímos capacidades e talentos diferentes. Uns são mais ágeis e outros mais articulados, uns musicais e outros enérgicos, uns impulsivos e outros reflexivos. Porém, as necessidades materiais e culturais mais intensas são comuns a toda a humanidade. A necessidade de abrigo e alimento, de educação e saúde, de segurança e lazer, de informação e aprovação, de trabalho e reconhecimento é universal. É a exploração de uns pelos outros a causa da desigualdade, e não o contrário. Na sociedade contemporânea, a condição de classe é determinada pelo direito de herança, na mesma proporção em que em outras épocas era garantida pelo berço familiar. Pior, na maior parte do mundo, as oportunidades de ascensão social ou permaneceram estagnadas, ou vieram diminuindo no último quarto de século. A geração mais jovem desconfia que não irá melhorar suas condições de vida, comparativamente, às de seus pais. A mobilidade social foi reduzida, tanto no centro como na periferia do capitalismo. As possibilidades de melhorar de vida pelo talento ou pelo esforço vieram sendo reduzidas. A inteligência ou a perseverança, a criatividade ou a audácia são aptidões que podem ser encontradas em todas as classes. Porém, a ironia é que será encontrada, com maior freqüência, entre os trabalhadores, entre os despojados, entre os pobres. Não porque sejam melhores. Mas porque são mais numerosos. Estas qualidades serão descobertas em maior número entre os filhos do trabalho manual pela mesma razão que entre eles se encontrarão, também, a maioria dos que têm gripe: porque são as maiorias. A desigualdade do mundo que nos cerca não é nem justa, nem racional. Sua explicação, para os socialistas, é o capitalismo. De cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo o trabalho realizado Os socialistas estabeleceram como princípio de distribuição para uma sociedade de transição “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo o trabalho realizado”. Um critério de regulação da distribuição que admitia que não poderia haver, de um dia para o outro, gratuidade imediata para todos, nem mesmo daqueles produtos e serviços que correspondem à satisfação das necessidades mais intensamente sentidas. Transição significa processo de passagem, de mudanças, com estágios intermediários, ou seja, fases, períodos, em uma dinâmica histórica. Ao reconhecer que a distribuição seria ainda regulada segundo o trabalho realizado – portanto, salários desiguais para trabalhos desiguais –, os socialistas estavam anunciando sua intenção de pôr fim à remuneração do capital, mas admitindo, transitoriamente, uma distribuição desigual, o que é o mesmo que aceitar algum critério de racionamento. O cancelamento da renda do capital corresponderia a uma socialização, pelo menos nas condições atuais, de um terço da riqueza nacional produzida a cada ano. Isso seria suficiente, na maioria das sociedades urbanizadas, para erradicar a pobreza. Mas não ainda o necessário para a distribuição da abundância. Os próprios marxistas foram os primeiros a reconhecer que a diminuição da desigualdade social impulsionada pelo princípio meritocrático (a tirania do esforço ou do talento) “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo o trabalho realizado”, não garantiria uma justa igualdade social. A explicação é simples: porque estaríamos diante de um tratamento igual para os desiguais. Quando aqueles socialmente desiguais recebem o mesmo tratamento, a desigualdade, necessariamente, se perpetua. O princípio de tratar de forma igual os desiguais seria igualitário, formalmente, mas não permitiria eliminar a desigualdade. A igualdade de oportunidades não é o mesmo que a igualdade social. Ainda que seja, incomparavelmente, mais justa que a desigualdade que prevalece no capitalismo. O princípio abstrato da igualdade meritocrática preserva um tratamento desigual. No Brasil sabemos que os inscritos no vestibular de acesso às universidades públicas têm igualdade de condições formais, mas a seleção será decidida favorecendo os que tiveram melhores condições de preparação. A igualdade social só será conquistada quando todos os que assim quiserem – sem seleção pelo mérito ou por sorteio – possam realizar seus estudos superiores, e existam vagas suficientes em universidades com ensino de qualidade equivalente. A manutenção das diferenças salariais seria explicada não só pelas habilidades individuais inatas, ou pelas diferenças que resultam de inúmeros fatores socialmente involuntários (oportunidades distintas, situações familiares específicas, dificuldade de acesso à educação, diversidade das condições materiais e culturais) que podemos definir como a herança da etapa histórica anterior. Em uma sociedade em transição ao socialismo, na qual a escassez relativa exigiria a preservação da forma salário – expressando uma forma de racionamento ou regulação do consumo –, estaríamos apenas diante de uma igualdade crescente. A preservação da forma salário, mesmo se alguns dos produtos mais necessários tiverem distribuição gratuita, significa que a economia ainda mantém, essencialmente, relações mercantis. Porque a chave do desafio histórico deve ser a desmercantilização do próprio trabalho. Enquanto não forem atingidos os graus superiores de desmercantilização ou gratuidade, entendida como a disponibilidade universal dos bens e serviços mais intensamente desejados, condicionada pelo desenvolvimento das forças produtivas, pela superação da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual e pela participação coletiva nas decisões-chave da vida econômica e social, desfrutaremos de graus crescentes de liberdade, proporcionais à redução da desigualdade. Os socialistas sempre defenderam a posição de que as diferenças salariais existentes na maioria dos países, com diferenças entre o piso e o teto que excedem a variação de um para cem, não correspondem às diferenças de qualidade, nem à quantidade de trabalho efetivamente realizada. Não é nem razoável nem admissível que um trabalho possa ser gratificado com um salário muitas dezenas de vezes maior que outro. O dia tem 24 horas para todos. Os inimigos da causa igualitarista respondem a esta defesa da luta por maior igualdade social, essencialmente, com dois argumentos. O primeiro é a impossibilidade da abundância. Este argumento se desmoralizou com o tempo, diante da evidência de que a pobreza, a penúria ou a escassez em que vive a imensa maioria podem ser superadas, diante da potência de criação de riqueza que nos cerca. O segundo argumento seriam os limites de uma condição humana implacável, de uma essência humana imutável. Enfim, o homem como lobo do homem. Remetendo as formas econômicas da organização social contemporânea às características de uma natureza humana invariável, liberais e conservadores fundamentam a justificação do capitalismo na desigualdade natural. A rivalidade entre os seres humanos, e a disputa pela riqueza seriam um destino incontornável. Um impulso egoísta ou uma atitude comodista, uma ambição insaciável ou uma avareza incorrigível definiriam a nossa condição. Eis o fatalismo: o individualismo seria, finalmente, a essência da natureza humana. E a organização política e social deveria se adequar à imperfeição humana. E resignar-se.Uma humanidade dominada pela mesquinhez, pela ferocidade, ou pelo medo precisaria de uma ordem política disciplinada, portanto, repressiva, que organizasse os limites de suas lutas internas como uma forma de “redução de danos”.
Resumindo e sendo brutal: o direito ao enriquecimento seria a recompensa dos mais empreendedores, ou mais corajosos, ou mais capazes e seus herdeiros. A propriedade privada não seria a causa da desigualdade, mas uma conseqüência da desigualdade natural. É porque são muito variadas as habilidades e disposições que distinguem os homens que, segundo os defensores de uma natureza humana rígida e inflexível, existe a propriedade privada, e não o inverso. A diversidade entre os indivíduos, inata ou adquirida, seria o fundamento da desigualdade social. Em consequência, o capitalismo seria o horizonte histórico possível e o limite do desejável. Porque com o capitalismo, em princípio, qualquer um poderia disputar o direito ao enriquecimento.
Esses argumentos não têm, no entanto, o mais mínimo fundamento científico. Em oposição à visão de uma natureza humana inflexível, o marxismo nunca defendeu a visão simétrica e ingênua de uma humanidade generosa e solidária. Nem fundamentou a necessidade da igualdade social na igualdade natural. O que o marxismo afirmou é que a natureza humana tem dimensão histórica e, portanto, se transforma. Relações sociais que favorecem a solidariedade impulsionam comportamentos fraternos. Relações sociais que premiam a cobiça estimulam comportamentos brutais. A inveja, a boçalidade, a monstruosidade são tão possíveis quanto a honestidade, a generosidade, e a gratidão. O que o marxismo preservou foi a idéia de que a diversidade de capacidades não permite explicar a desigualdade social que nos divide.
Argumentou-se que, apesar de ser irrefutável que o capitalismo gera crescente desigualdade social e nacional, permanecia como o horizonte da sociedade contemporânea. Porque esta deformação de maior injustiça estaria compensada pelo aumento da riqueza. Em outras palavras, que o capitalismo seria capaz de erradicar a pobreza, ainda que venha aumentar a desigualdade.
Embora tenha sido evitado, até agora, uma depressão catastrófica, a crise mundial aberta em 2008 veio desmentir esta ideologia. A estagnação da economia norte-americana, e a regressão européia confirmaram a vigência da teoria das crises cíclicas do capital. O desperdício de recursos naturais e humanos não deixou de aumentar nos últimos dez anos. A segunda década do século XXI no Brasil será uma década recessiva, portanto, perdida.
O projeto do socialismo é a distribuição da riqueza entre todos os que trabalham, eliminando a renda do capital. Não nos deve surpreender, no entanto, que muitos acreditem na acusação dirigida aos marxistas de que são igualitaristas que dizem que todos deveriam receber o mesmo salário, ou que todos os salários deveriam ser iguais ao valor agregado pelo seu trabalho.
Não há, contudo, um só texto de Marx ou, de resto, de qualquer um dos principais herdeiros de sua tradição, que defenda salário igual para trabalho diferente, nem foi este o critério dos comunnards, dos bolcheviques ou de qualquer das outras experiências pós-capitalistas do século XX.
Enquanto a disparidade de condições e intensidade do trabalho persistirem, trabalhos diferentes terão, obrigatoriamente, remunerações desiguais, portanto, umas serão maiores que outras. Os marxistas não defenderam, tampouco, que os salários poderiam ser iguais ao valor transferido à produção. Isso seria uma quimera, porque supõe ser possível que cada um receba integralmente de acordo com o que produz. Os socialistas reconheciam a necessidade de fundos públicos, tanto para garantir os investimentos ou para financiar os serviços sociais, quanto para assegurar a proteção dos inaptos para o trabalho, como doentes ou idosos.
Os marxistas nunca tiveram, todavia, a ilusão de que este princípio organizador da distribuição pudesse ser implantado imediatamente, ou à escala de um só país. Os marxistas consideravam que o socialismo teria uma fase inicial em que deveriam ocorrer duas profundas transformações: a eliminação da remuneração do capital, ou seja, a garantia de que a riqueza produzida socialmente deveria ser distribuída entre todos, e uma substancial redução das diferenças entre os salários.
Direitos são compreendidos, pelos socialistas, como proporcionais aos deveres. Como nos versos da Internacional, o hino que cantamos: não mais direitos sem deveres, não mais deveres sem direitos.
[1] A expressão "De cada um conforme seus meios, a cada um conforme suas necessidades" foi utilizada pela primeira vez por Louis Blanc no texto Organisation du travail, de 1839, como uma modificação da citação de Saint-Simon "A cada um conforme suas capacidades, a cada capacidade conforme suas obras. Louis Blanc foi um socialista francês, defensor do cooperativismo. Teve importante participação na Revolução de 1848.
[2] Karl Marx. Crítica ao Programa de Gotha. Disponível https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/index.htm
Consulta em 27/07/2018.
[3] Karl Marx. VI Tese sobre Feurbach. Disponível https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm
Consulta em 27/07/2018.