“Se a classe operária tudo produz, a ela tudo pertence”? Não é bem assim...

"A questão é o uso que se faz do produto. Isto é, tudo que a burguesia criou pode ser usado contra ela. Não é a toa que Marx afirmou que 'a burguesia será o seu próprio coveiro'. O problema não é o produto, mas a alienação do trabalho".

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O produto remete às mais pervertidas extravagâncias do vizinho, exerce o papel de alcoviteiro entre ele e as suas necessidades, desperta nele apetites patológicos, fiscaliza todas as fraquezas, para depois exigir o pagamento por este serviço amoroso.

Karl Marx

  A frase que dá título a esse artigo é utilizada por algumas pessoas, que se intitulam de esquerda, como argumento para justificar o uso de iPhone, a compra de carros etc.. Mas ela (seja lá a quem ela pertença) não leva em conta a crítica de Karl Marx à economia política, principalmente no que condiz à teoria do trabalho alienado. O trabalhador se aliena pelo objeto no qual o seu trabalho se transforma. “A realização do trabalho constitui simultaneamente a sua objetivação”.1 Isso ocorre porque “o trabalhador se relaciona com o produto do seu trabalho como a um objeto estranho”. Ele se esgota, empenha toda a sua força para produzir o mais belo e perfeito dos produtos e, no fim, torna-se menos humano por ter deixado de exercer outras atividades. O tempo gasto na produção da mercadoria poderia ter sido usado para refletir, atividade chave pela qual se eleva o indivíduo ao status de ser humano. Portanto, sua vida passa a estar no objeto que produziu. O produto torna-se externo a ele e “o que se incorporou no objeto do seu trabalho já não é seu”. Aquele objeto pertence agora ao mercado (antes de sua compra), assim como a sua vida. “O trabalho não produz apenas mercadoria; produz-se também a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e justamente na mesma proporção com que produz bens”, destaca Karl Marx.2 Sendo assim, a ideia de que tudo aquilo que a classe operária produz pertence a ela é falsa, pelo menos na sociedade capitalista. Isso também ocorre por uma perspectiva filosófica na qual o trabalhador quando está no processo de compra não é mais trabalhador e sim consumidor. O produto não pertence a aquele que o produz, mas a aquele que o compra. Assim, o indivíduo da classe operária se aliena duas vezes: no processo de produção e no processo de consumo. Os meios de existência fornecidos pela natureza, isto é, pela realidade sensível, são transformados em trabalho. A partir do momento em que o trabalhador não usa a natureza para produzir para si, mas para o mercado, ele se torna escravo do objeto que produziu, de modo que serve duas vezes aos capitalistas: trabalhando e gastando o seu salário para comprar os produtos que saem das fábricas. O fruto do seu trabalho não serve para enriquecê-lo, mas para torná-lo cada vez mais pobre. Isso porque descarrega todo o seu esforço na produção (suprimindo o tempo para exercer atividades reflexivas) para no fim consumir os produtos que o mercado determinou como consumíveis. Neste último caso, o trabalhador, por não ser capaz de uma reflexão autônoma, porque sua capacidade de pensar criticamente foi danificada pelo trabalho físico exaustivo, consome o que o mercado lhe oferece sem questionar. Essas mercadorias acabam por se tornarem, portanto, fruto de uma produção acrítica, possuidoras de uma natureza acrítica para, enfim, um consumo acrítico delas. Se o burguês for acrítico tanto faz, já que a sociedade do jeito que é o favorece. Neste círculo vicioso perfeito para o capitalismo, “a vida que [o operário] deu ao objeto se torna uma força hostil e antagônica”3 a ele. Daí o filósofo alemão complementa: “É evidente, o trabalho produz coisas boas para os ricos, mas produz a escassez para o trabalhador. Produz palácios, mas choupanas para o trabalhador. Produz beleza, mas deformidade para o trabalhador. Substitui o trabalho por máquinas, mas encaminha uma parte dos trabalhadores para um trabalho cruel e transforma os outros em máquinas. Produz inteligência, mas também produz estupidez e a cretinice para os trabalhadores”.4 Outro aspecto do trabalho alienado é a transformação do trabalho em trabalho forçado. Porque o trabalhador não trabalha para se realizar, mas para consumir. Trabalha-se com um objetivo externo ao trabalho, não pelo trabalho em si. Desta forma, ele “nega a si mesmo, não se sente bem, mas, infeliz, não desenvolve livremente as energias físicas e mentais, mas esgota-se fisicamente e arruína o espírito”.5 As pessoas trabalham para comprar um carro, sustentar a família, beber, etc., mas nunca trabalham, exclusivamente, para realizar na prática laboriosa o que desejam. As mutações tecnológicas do trabalho não mudaram essa situação do trabalhador, podem ter até piorado. “A revolução informacional pode ser uma fonte de novos perigos se, em vez de colocar os computadores a serviço dos homens, tentar organizar o trabalho dos homens segundo o modelo do trabalho dos computadores”6, diz o professor do Collège de France, Alain Supoit. Se o ser humano não faz algo de maneira lúcida, ele se reduz a um simples animal, já que estes também trabalham. “A atividade vital lúcida diferencia o homem da atividade vital dos animais. Só por este motivo é que ele é um ser genérico. Ou então, só é um ser lúcido, ou melhor, a sua vida é para ele objeto, porque é um ser genérico. Exclusivamente por este motivo é que sua atividade surge como atividade livre. O trabalho alienado inverte a relação, uma vez que o homem, enquanto ser lúcido, transforma a sua atividade vital, o seu ser, em simples meio da sua existência”.7 Para Karl Marx, nem o aumento de salários mudaria esse cenário, pois “não passaria de uma melhor remuneração dos escravos e não restituiria o significado e o valor humanos nem ao trabalhador, nem ao trabalho”.8 Portanto, se ser socialista é querer o fim dessa lógica baseada na alienação do trabalho, o que impediria, por exemplo, um desembargador, um piloto de avião, ou um trabalhador de outras profissões com altos salários de ser socialista? Consumidor e comunista Os instrumentos usados para satisfazer as primeiras necessidades (“comer, beber, ter moradia, vestir-se e algumas coisas mais”) conduzem a novas necessidades. Necessidades que surgem depois de se encher a barriga... Se as primeiras necessidades são satisfeitas mediante exploração, as classes que exploram, e que detém os instrumentos para exercer a exploração sobre o outro, irão conduzir as novas necessidades. Isso é interessante se olharmos o mundo de hoje, onde o consumo exagerado seria a nova necessidade que após enchermos a pança. Por e para ele ganhamos a vida. Mas, curiosamente, só é possível ser comunista ao se tornar consumidor. Porque a maneira pela qual, no modo de produção capitalista, as primeiras necessidades são satisfeitas, condição primeira para ser comunista (porque primeiro é preciso estar vivo, comer, beber, ter moradia etc..), são as que conduzem ao consumismo. Daí, a questão é o que se faz com o que se consome. Como o vinho que pode servir tanto para aquecer e estimular uma conversa, quanto para servir de convite para o alcoolismo. Portanto, não há problema algum um comunista usufruir dos aparelhos produzidos pelo mercado. Primeiro que ser comunista não é um estilo de vida. Abster-se da realidade é muito mais a cara de um hippie que de um marxista. Segundo porque se um socialista fosse obrigado a não usar celular, computador, carros, etc., ele deveria deixar de ser também trabalhador, pois o operário é, também, um produto da sociedade burguesa e do próprio mercado. A questão é o uso que se faz do produto. Isto é, tudo que a burguesia criou pode ser usado contra ela. Não é a toa que Marx afirmou que “a burguesia será o seu próprio coveiro”. O problema não é o produto, mas a alienação do trabalho. Ao nos libertarmos da alienação, possível apenas com a derrubada do modo de produção capitalista, isto é, na transformação da maneira pela qual se ganha a vida, o mercado não nos forçará mais a consumir, sem um reflexão prévia, o que ele nos oferece, comprar-se-á a partir do modo de cada um enxergar a vida. Aí sim, tudo que a classe operária produzir a ela pertencerá. 1 MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 112. 2 Id. 111 3 Id. p. 112. 4 Id. p. 113. 5 Id. p. 114. 6 SUPOIT, Alain. E se refundarmos a legislação trabalhista. Le monde diplomatique. Ano 10, n. 123, pp. 7-9, out, 2017, p. 8. 7 MARX, Karl. op. cit., p. 116. 8 Id. p. 121.