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Vocês lembram da farinata do Doria? Lembram, não? Então, deixa eu refrescar a memória de vocês.
É que vivemos tempos de eleição e o comportamento dos políticos profissionais não traduz apenas suas escolhas pessoais, mas também, e principalmente, as agendas públicas desses sujeitos, os projetos de nação que são defendidos pelos seus partidos políticos.
O tema veio ao debate público em outubro do ano passado, quando João Doria (PSDB), então Prefeito de São Paulo, apresentou a proposta de distribuir uma farinha nutritiva às pessoas mais pobres.
Doria chamou o projeto de “Alimento para Todos”.
“Comida de astronauta pra combater a desnutrição”, nas palavras do próprio João Doria.
Os especialistas se dividiram. Alguns nutricionistas defendiam a ideia, outros criticavam. Por isso, não vou dar opinião sobre o assunto, e nem poderia. Pois é assim que devemos agir: não falamos do que não sabemos.
Meu interesse neste ensaio é outro.
Quero mesmo é examinar a reação da classe média brasileira ao projeto de desnutrição proposto pelo Prefeito de São Paulo. O curioso é que as mesmas pessoas que passaram anos chamando o Bolsa Família de “Bolsa Esmola” saíram em defesa da farinata do Doria.
O que leva alguém a rejeitar o Bolsa Família e defender a farinata do Doria?
Essa é a pergunta que me acompanha até o fim, nesse meu esforço de compreensão da mentalidade coletiva de um segmento da sociedade brasileira que, de um modo vago e um tanto impreciso, costumamos chamar de “classe média”.
O que está em jogo nesta discussão é o direito de escolha do miserável, que o Bolsa Família transformou em pobre.
O governo que se limita a distribuir farinha nutritiva acredita que o único direito que o pobre tem é o de comer. É ter a dieta com a aquela quantidade mínima de calorias diárias recomendada pela ONU.
O governo que distribui renda entende que a pobreza deve ser remediada pela ampliação do poder consumo, pelo direito que o miserável, transformado em pobre, deve ter de escolher o que vai fazer com aquele dinheirinho.
Entendem a diferença entre as agendas?
O Bolsa Família não é farelo. É dinheiro público distribuído. O beneficiado saca a grana na agência bancária, sem depender de caridade, é impessoal.
Política pública de amparo à pobreza não é caridade, não é pra ser caridade.
Política pública de amparo à pobreza significa o Estado cumprindo sua missão civilizatória. Uma sociedade onde as pessoas passam fome não é civilizada
Se a família assistida já tem alguma renda, o Bolsa Família complementa, ajudando a comprar um desodorante, a pagar a prestação de uma geladeira, pra beber água gelada, ou de uma televisão usada, pra assistir à novela e ao jogo de futebol. Ao beneficiado é dado o direito da escolha.
O miserável que o Bolsa Família transformou em pobre tem direito de escolher com o que vai gastar o dinheiro. Uma capacidade de escolha que é restrita, é claro, mas que transformou a vida das pessoas. Pra quem não tinha nada, o pouco é tudo.
O miserável, transformado em pobre, pode dizer para o dono da terra: “Não vou roçar o seu lote por 20 reais a diária. Se quiser pague mais. Se não quiser, fico em casa, pois o básico já tá garantido pelo Bolsa Família e você que se vire com seu lote”.
A miserável, transformada em pobre, passa ter o direito de olhar a madame e dizer: “Não vou faxinar a sua casa por uma diária de quarenta reais, ou por um prato de comida. Pague 120 e mais o transporte”.
O Bolsa Família empoderou o pobre, deu ao pobre o direito de dizer “não”, de vetar as relações de trabalho análogas à escravidão. O Bolsa Família é o complemento da Lei Áurea.
Tá exatamente aqui, no direito de escolha, aquilo que desperta o ódio da classe média brasileira.
São essas pessoas, que consomem, que sempre consumiram, que escolhem a marca do sabão em pó no supermercado, que se dizem contrárias ao Bolsa Família. Mas elas apoiaram a farinata do Doria. É claro! Elas se dizem cristãs.
Para essas pessoas, o pobre, por ser pobre, deve mesmo é se contentar com o mínimo.
Para essas pessoas, o “mínimo” se limita ao farelo necessário pra manter o organismo vivo. Esta é a diferença entre nós, os golpeados, e eles, que apoiaram o golpe parlamentar que violentou o mandato popular da Presidenta Dilma: para nós, estudar na universidade, ter casa digna com dois quartos, consumir tecnologia tão no pacote do mínimo”.
O grande câncer desse país, meus amigos e minhas amigas, é essa gente de mentalidade arcaica, forjada no escravismo e que busca a distinção, que goza com a exclusividade. Pra essas pessoas, não basta o conforto material. É necessário que só elas tenham esse conforto.
Ao ampliar o consumo para a base da pirâmide social, o governo dos trabalhadores não relou sequer um dedo nos interesses de quem quer que seja. Por isso, foi sempre criticado à esquerda, acusado de ser um mero gestor do capitalismo.
Mas ainda assim, mesmo com toda sua docilidade, o governo dos trabalhadores despertou o ódio da classe média brasileira.
Por causa da corrupção?
Não, não tem nada a ver com a corrupção, nunca teve. Na real, o problema nunca foi esse. A narrativa da corrupção é apenas um nariz de cera, um pretexto.
Essa gente sempre tolerou a corrupção. Eles mesmos são sonegadores, são corruptos. A diferença entre a sonegação e a corrupção é meramente cronológica. O sonegador rouba o dinheiro antes que ele entre nos cofres públicos. O sonegador é o corrupto rápido no gatilho.
O ódio tem outra explicação: o governo dos trabalhadores colocou em xeque o primado da distinção social, a exclusividade dos reis e rainhas, dos príncipes e princesas, do camarote.
O governo dos trabalhadores abalou a identidade social dessa gente que no carnaval paga caro pra ter um território exclusivo pra chamar de seu, onde somente os seus iguais podem entrar.
É por isso, meus amigos, que eles apoiam o farelo, mas babam de ódio quando o miserável passa a ter algum poder de comprar, algum direito de escolher.
Eles não são burgueses, não são cristãos, não são conservadores, não são liberais. Eles são Senhores de Engenho.
Enquanto se fartam com brioches, os sinhôs e sinhás dizem aos pobres “agradeçam a Deus pelo vosso farelo, e lambam os beiços”.