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Em 2007, um juiz paranaense impediu um trabalhador de participar de uma audiência de instrução e julgamento. O motivo para tal foi o fato de que o trabalhador calçava chinelos de dedo, o que foi interpretado pelo magistrado como inapropriado, vedando-se ao jurisdicionado o direito de participar do ato processual em que seriam produzidas as provas, determinando-se a redesignação da audiência.
O jurisdicionado voltou para sua casa, obedecendo à determinação judicial. Porém, irresignado. E o advogado tomou as medidas judiciais cabíveis, além de denunciar à mídia o ato que, a toda evidência, extrapolava a manifestação do juiz como agente estatal: tratava-se de preconceito de classe reverberado por trás da toga, se valendo ilegitimamente do poder jurisdicional de que o juiz fora investido para o fim de humilhar, sem qualquer fundamento legal, aquele que a lei deveria proteger.
No dia em que a audiência foi remarcada, o trabalhador compareceu calçando um par de sapatos três números menor do que o de seus pés. E o juiz, impactado pela repercussão negativa do caso, levou sapatos usados para “presentear” o reclamante.
Quando o trabalhador soube do “presente”, por meio dos jornalistas, disse que iria recusar os sapatos do juiz e continuar usando o calçado três números abaixo do seu. Lembro de suas palavras: “não vim aqui pedir o que não é meu; vim exigir o que é meu direito”.
Usei esse caso em sala de aula durante muitos anos para explicar o conceito de pretensão: posição subjetiva de poder exigir a subordinação do interesse alheio ao próprio interesse, por força da incidência do ordenamento jurídico. O juiz não sabia o que era pretensão processual, mas o trabalhador sem sapatos sabia.
Em 2007, as redes sociais não possuíam o alcance que têm hoje. Mas mesmo assim a história repercutiu enormemente. Sabíamos de incontáveis casos de abusos, como o caso da juíza que não permitia uso de bermudas na audiência, levando trabalhadores a trocarem de roupa em pleno corredor da justiça do trabalho localizada na região metropolitana de Porto Alegre. Eram tantos os casos, e tão invisibilizados, que a repercussão do “caso das sandálias” nos deu esperanças de que juízes e juízas iriam passar a refletir com muito maior senso crítico sobre os limites inerentes ao exercício da atividade jurisdicional.
Infelizmente, nesses onze anos, caminhamos no sentido oposto. O esvaziamento dos poderes daquele que deveria ser o órgão de controle externo do poder judiciário, o CNJ, pelo próprio STF, corroborou o vale-tudo judicial que assistimos de modo tão escancarado nos dias de hoje. O juiz nunca esteve tão nu.
O encontro da presidenta* do STF, ministra Cármen Lúcia, com o presidente investigado Michel Temer, em visita do último na residência da juíza a quem compete julgá-lo, repetindo gesto que ocorreu há cerca de dois anos com o ministro Gilmar Mendes, é nada menos do que um acinte.
Para além da notória violação dos limites que, ultrajados, implicam suspeição do magistrado, há um elemento político ainda mais grave nesse agir acintoso: quando os ministros da mais alta corte do país escarnecem dos limites impostos pela própria toga, colocam em xeque não apenas sua atuação como agentes estatais, mas a credibilidade e a razão de existir do judiciário como um todo.
Afinal, conforme clássica lição de Chiovenda, o proprium da jurisdição é a imparcialidade. O que justifica o poder do estado de dizer, em última instância e mediante uso da força, como devem as pessoas comportarem-se, é o fato de que o estado o faz impondo o direito ao caso concreto de modo isento.
Essa lição hoje soa de intolerável ingenuidade. E é justamente isso que assusta: a jurisdição tem ínsita um contrato social, qual seja, o de que o monopólio da jurisdição tem como contrapartida o devido processo legal, com todas as garantias a ele inerente. A ruptura do contrato social da jurisdição escancara a arbitrariedade nua de uma casta judicial que tomou para si e usurpou o poder jurisdicional que tem fundamento na soberania popular.
Por isso, quando nessa semana recebemos a grata notícia de que o juiz paranaense que proibiu o trabalhador de participar da audiência de instrução por calçar sandálias foi condenado a pagar ao estado indenização de doze mil reais, em ação regressiva movida pelo estado contra o juiz, um sopro de tímida esperança nos toca.
Não porque, nesse momento de excessos e ativismo judicial exacerbado, possamos confiar no próprio judiciário para ditar seus limites. Mas apenas por nos relembrar que juízes e juízas não são o estado quando agem por si: a toga não tem o condão de conferir legitimidade aos seus atos arbitrários, praticados com excesso do poder jurisdicional conferido pela cláusula da soberania popular. E mesmo quando alguns magistrados o esqueçam, é fundamental que nós lembremos.
Resta a pergunta: diante de um judiciário que rompe com seu proprium para se colocar como protagonista da política partidária, para burlar o processo eleitoral e tirar do tabuleiro das eleições o candidato com maior chance de êxito nas urnas, teremos algum dia reconhecido nosso direito à indenização, pelos excessos cometidos, por violação ao nosso direito ao voto e à democracia?
* Presidenta é palavra que existe nos dicionários da língua portuguesa, no gênero feminino, há mais de cem anos. Um certo processualista comentou uma vez que pouco importava a existência da palavra no dicionário, o uso da expressão com inclinação no gênero feminino era demonstração de deselegância. Em meu modesto modo de pensar, deselegância é torturar a língua portuguesa recusando a obrigatória inclinação, seja em gênero, seja em número. Imaginem a elegância de falar “os presidente”. Mas isso já é tema para uma próxima coluna.