Escrito en
COLUNISTAS
el
O código é claro em dizer que ninguém pode ser recrutado por um motivo ou por outro. Ao contrário do que se está dizendo, o código protege o indivíduo em sua liberdade de tomar decisões sem ser recrutado por organizações de diferentes naturezas.
Por Leandro Seawright*
Membros da bancada evangélica brasileira - símbolo do fundamentalismo religioso - estão acusando, juntamente com parte da mídia, com parte dos religiosos e com parte da imprensa internacional, ao governo de Evo Morales caracterizado, por tais acusadores, como sendo ditatorial. As denúncias de que Evo Morales teria recrudescido, ele próprio, em nome de todo o ordenamento jurídico da Bolívia advém de diferentes partes: dos neopentecostais aos pentecostais e até mesmo das denominações chamadas históricas. Grupos como a Junta de Missões Mundiais da Convenção Batista Brasileira que adotam posições bastante conservadoras como aquela, no final do ano passado, em que homens deveriam ir ao culto vestidos de azul e mulheres vestidas de rosa também aproveitaram para promover a convicção:
Ajude a Fórum a fazer a cobertura do julgamento do Lula. Clique aqui e saiba mais.
Proposto por Evo Morales em dezembro passado, o texto deve ser aprovado em breve promovendo uma série de mudanças na legislação da Bolívia. O problema para as igrejas está no artigo 88, no 12º parágrafo, que caracteriza como crime “o recrutamento de pessoas para participação em organizações religiosas ou de culto”, prevendo prisão de 7 a 12 anos para quem for pego evangelizando (http://www.jmnoticia.com.br/2018/01/09/regime-de-evo-morales-criminalizara-evangelizacao-bolivia/).
A acusação, pelas redes sociais, é de que o presidente estaria “perseguindo aos cristãos” (expressão bastante pesada para os cristãos que se lembram do Império Romano do primeiro século), sobretudo aos evangélicos, que pretendem fazer a evangelização nas ruas ou nos mais variados lugares do país. São áudios disseminados por todas as partes e por todos os meios, pois os fundamentalistas parecem dominar a ubiquidade das redes.
Segundo os acusadores, o novo “Código del sistema penal” criminalizaria aos cristãos por meio do artigo 88, inciso 11, que diz:
“Reclutamiento de personas para su participación en conflictos armados o en organizaciones religiosas o de culto”.
http://blogs-static.gazetadopovo.com.br/wp-content/uploads/sites/210/2018/01/LEY-1005-Co%CC%81digo-del-Sistema-Penal-14-12-17-PL-122-17-18.pdf
Sem recorrer aos argumentos razoáveis à luz da Constituição da Bolívia - o que seria factível, pode-se dizer que o verbo (aqui traduzido) “recrutar” não é evidentemente o mesmo do que evangelizar ou persuadir. Existe uma diferença semântica fundamental, pois “recrutar” é alistar, convocar, aliciar.
O código é claro em dizer que ninguém pode ser recrutado por um motivo ou por outro. Ao contrário do que se está dizendo, o código protege o indivíduo em sua liberdade de tomar decisões sem ser recrutado por organizações de diferentes naturezas. Penso ser, inclusive, uma proteção contra o fundamentalismo religioso e o fortalecimento da autonomia do indivíduo. Sempre é oportuno destacar que Evo também pretende resguardar as comunidades tradicionais do neopentecostalismo em sua face de mercado mais agressiva. Também porque muitos grupos de cristãos evangélicos, mas não todos, pretendem diluir o conhecimento tradicional indígena do país, ao invés de pregarem a convivência.
O argumento é tão infundado que o artigo 82, inciso 7, protege os lugares de culto e o patrimônio religioso - entre outros:
“Dirigir ataques contra edificios dedicados a la religión, educación, artes,
ciencias o beneficencia, monumentos históricos, hospitales y lugares en
que se agrupen a enfermos y heridos, siempre que no sean objetivos
militares”.
Assim, parte da mídia brasileira, novamente, se imiscuiu em descredenciar um governo de traços populares, e prepara terreno para a narrativa evangélica fundamentalista contra o campo progressista brasileiro no ano de 2018.
*Leandro Seawright é historiador e professor universitário. Pós-doutorando e doutor em História em História Social pela FFLCH/USP. Foi pesquisador da Comissão Nacional da Verdade (CNV). É autor de diversos artigos acadêmicos e livros, entre eles “Ritos da Oralidade: a tradição messiânica de protestantes no Regime Militar Brasileiro”.
Foto: Sebastian Baruli/Creative Commons