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A menstruação de Valter Hugo Mãe é um livro de poesia de Carla Diacov lançado há três meses em um projeto não-comercial a partir de um convite do próprio escritor português. Trata-se de uma poesia altamente original e técnica que retoma temas familiares e sociais “sob o signo da menstruação”. Leia mais na coluna de Tomaz Amorim
Por Tomaz Amorim**
A menstruação de Valter Hugo Mãe é um livro de poesia da poeta paulista Carla Diacov* lançado em Setembro de 2017 em um projeto não-comercial a partir de um convite do próprio escritor português. Valter Hugo Mãe é um dos mais importantes escritores contemporâneos em língua portuguesa, tendo ganhado prêmios importantes como o José Saramago e o Portugal Telecom. Entre suas obras constam O remorso de baltazar serapião (2006), O filho de mil homens (2011) e Homens imprudentemente poéticos (2016). Hugo Mãe propôs um título como provocação a partir do qual Diacov, mantendo-o ou não, deveria escrever um livro de poesia a ser publicado com outros na coleção “casa mãe”. Os livros serão doados e, em breve, disponibilizados eletronicamente. A partir de entrevistas com o autor e de uma leitura de sua obra, Diacov produziu um livro de poesia que é também comentário de uma obra, ou melhor, ponto de partida para uma releitura de temas do escritor português “sob o signo da menstruação”. Cada poema é acompanhado por uma pintura feita pela poeta e pintada com seu próprio sangue de menstruação.
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No poema que se inicia com “havia somente uma cadeira para o casal”, temas de O filho de mil homens são retomados mais declaradamente. Trata-se de um romance sobre a família e sobre as possibilidades de reconstrução de uma família no contexto pós-família tradicional contemporâneo, uma difícil e necessária empreitada: reinventar a afetividade e as relações de parentesco por fora da lógica da violência patriarcal. Hugo Mãe se esforça para reinventar estas relações em seu livro e Diacov ressalta aspectos - às vezes críticos e irônicos - a partir de personagens e cenas do livro. Alguns poemas são inclusive dedicados a personagens do livro. O esforço de ambos é reinventar uma vida afetiva (com mais otimismo no caso de Hugo Mãe, com alguma desconfiança esperançosa como no caso de Diacov) para aqueles excluídos dela no contexto patriarcal: mulheres, homossexuais, idosos, deficientes físicos, órfãos, etc.
[caption id="attachment_122951" align="aligncenter" width="573"] A poeta paulista Carla Diacov[/caption]
A poesia de Diacov é difícil, hermética, não no sentido de uma mensagem obscura a ser decifrada, mas mais como um mosaico impressionista produzido a partir da repetição e variação dos sons e imagens. Menos uma tese ou linha argumentativa, do que um desenho que pode ser visto ou não dependendo do ângulo de observação. Este desenho surge a cada verso e a cada verso se transforma. Há uma narrativa - a própria transformação das imagens e dos sons é uma narrativa, traz uma concepção de história sobre como as coisas deixam de ser o que são, se aproximam por afinidades, se afastam, são raras e comuns:
“todas as claras todas as gemas
todos os ovos que não vingaram todos
os momentos alguns outros momentos que não
nenhuma chave em risco de janela todas as
cortinas umas poucas ondas quase todas as
conchas desistidas todos os pelos axilas”.
O ritmo e a sonoridade de sua poesia jogam com as expectativas do leitor. Frases feitas são sabotadas com significantes parecidos, mas de sentido sensivelmente diferente. A quebra da expectativa desnaturaliza verso e ideia permitindo uma abordagem mais crítica do que está sendo dito. A crítica é tão discreta quanto permanente, “duas mulheres cometem conversas”. A cavidade aberta vira a “capacidade” aberta, o “objeto” de limpeza vira “abjeto”. O ouvido organiza a sequências imagens. Da Vênus, Diacov explora os “usos”. Os tempos verbais e as concordâncias não se submetem à norma culta, tudo pode ser desviado e revelar, com calculado improviso, um significado improvisado.
[caption id="attachment_122952" align="aligncenter" width="822"] A coleção "casa mãe"[/caption]
A formiga que carrega cem vezes seu próprio peso e que anda aos bandos é como a figura da mulher, mas sua “involução”, como a eu-lírica se nomeia, é outra coisa. Não há na poesia de Diacov metáforas no sentido tradicional, como transporte de significados iguais em imagens diferentes, mas imagens que circulam e investigam temas. Assim, a figura da mulher é central, mas não se resume a ela, pelo contrário, parte dela para rascunhar, mapear um ponto de vista do mundo ainda pouco comum na literatura (masculino-)universal.
Sergio Maciel escreve com razão sobre este movimento milagroso que contém simultaneamente a esterilidade da menstruação e a fertilidade do parto. “O livro se abre com a fertilidade da Vênus, passa por uma consideração da mulher e da menstruação e termina com um poema sobre um filho. Acho curioso porque, biologicamente, novamente, a menstruação vai significar precisamente a ausência desse rebento (pra muita gente vai significar o alívio, aliás). Mas em Carla sucede o contrário. Os ovos que não vingaram aqui vingam”.
Os temas ligados à mulher ressurgem aqui e são tratados menos através de uma fala unidirecional e militante do que em uma fenomenologia. Cada coisa surge em sua versão perversa, cotidiana, no lamaçal da opressão, para na palavra seguinte aparecer como a mesma transformada em seu oposto secreto. O rito da pesca é um casamento, o pescador um tipo de noivo, a noiva um tipo de peixe a ser pescada (sua “calda” de vestido, sua calda de lagostim), o útero um tipo de rede, a rede um tipo de literatura tecida:
"com que calda com que véu acenada a
mãe a instalar redes de milagres como
é o milagre do parto antes mesmo da crendice
gestacional?"
A Ave Maria recitada pelas vizinhas de manhã se transforma em “ave marinha” e os versos já levaram o leitor para um voo sobre o mar, de manhã, com os pescadores, mas ainda na presença, sagrada ou profana, feminina. Paródia da oração para Maria que é descida dos céus virginais para a imanência dos abacateiros e romãnzeiros e figueiras cujos frutos não são mais "bendito o fruto do vosso ventre, Jesus" mas "compota bendita entre as pernas". A Maria de Diacov roga "por nós pescadores".
Em “todas as tetas” uma mulher é todas as mulheres do mundo, as mulheres do mundo são uma única mulher prototípica superior e esta mulher superior, por sua vez, se desdobra de novo nas mulheres comuns. A Vênus é “usada como amplificadora da pequenez / das outras vênus”, a ave marinha que é Maria e ao mesmo tempo “as outras aves”. A menstruação é sujeira, descarte, a menstruação é purificação e criação, como as pinturas de sangue menstrual mostram. Pinturas que, assim como as imagens autônomas de cada verso, também são autônomas em relação ao texto, ou seja, não os ilustram num sentido didático, se submetendo a autoridade deles, mas compõem com eles em uma mesma direção a partir de sua autonomia formal. São duas abordagens, dois esboços sobre um mesmo caminho desviante como mostra o esparramar fugidio, com jeito de aquarela, do sangue pincelado no papel.
Se há uma condição feminina,
"projetada gerada
nascida para carregar o teto
sustentar o mundo sobre a família
projetada barriga de carregar
avental marido filhos comida lombriga
ovos apunhaladas gonorreia sementes",
novamente, ela não surge como limitação, mas como ponto de abertura, de partida, de vista:
"para morrer e matar daquilo que me faz nascida
feito
amparo
se me retiro ora
ora nascida para não me retirar".
A repetição, que tem funções múltiplas na história da poesia, também tem usos variados na poesia de Diacov. Serve para reforçar, enfatizar, o que está sendo dito, mas também, pelo contrário, para interromper a linha de raciocínio e buscar outro caminho, desviante daquilo que se estava dizendo. Os afásicos conhecem esta dificuldade tanto quanto os poetas. Alguém, um estrangeiro, uma criança que repete e repete a palavra anterior procurando no seu limitado vocabulário a próxima palavra tão desejada, um velho que, pelo contrário, busca na imensidão das suas memórias desembaraçar a lembrança certa a ser contada, a poeta que fala, repete o começo e muda, repete o fim e muda o começo buscando não a palavra correta, mas o movimento apropriado, o ritmo que diverte no momento e busca a longo prazo. O método dessa poesia é o desvio:
“tudo de extra tudo colhido pelo caminho
no desvio nos mais particulares desvios”.
A repetição também é uma estratégia subversiva, um modo menos conflituoso, mais mediado de chegar à ideia:
"afiar as
setas afiar as setas e ria afiar as setas
tudo é montanha tudo aponta e mata
pensava baixinho que baixinho era menor
que pedra d'água baixinho era
quicar por sobre a ideia".
Repetição e desvio que também se manifestam na leitura: lê-se os poemas repetidas vezes e a cada leitura o tortuoso caminho aparece mais claro - para se repartir novamente em novas encruzilhadas. Esta poesia leva para perder-se longe.
Dois poemas de A menstruação de Valter Hugo Mãe:
*
.para Isaura.
a vênus de willendorf tem
a capacidade aberta e usada desde sempre
especialistas dizem
a vênus de willendorf
era usada em ritos de fertilidade
pequena usável
era usada como amuleto era
usada como objeto de limpeza abjeto
introduzido na
capacidade das vênus ordinárias era
usada como peso de segurar porta aberta
era usada para mexer alimentos ritualísticos
era usada na fervura dos alimentos mais ordinários
usada na terra era plantada antes dos alimentos
usada bolota aromatizadora pingava-se
óleo de casca de árvore ordinária na capacidade
da vênus de willendorf
que ficava ali ao uso do recinto
a vênus de willendorf era usada
dizem os especialistas
usada como socador de ervas
usada como amplificadora da pequenez
das outras vênus
todas ordinárias
usada para amaciar
carnes relações couros discussões
pois basta olhar para a vênus de willendorf
notável pequena usável
hojendia os especialistas usam
a vênus de willendorf
em suas especialidades
a vênus de willendorf jamais deixou de ser usada
*
creio na rede e dela cuido com as
chaves que me são oferendas da
natureza e da natureza das coisas
ou me perco nos sinais ou me faço dançarina deles
seguem meus dedos a costela do peixe
da sorte canta ali um galo e já a trama toca a floral
cai ali uma mulher no barro sobe ali a nuvem e
são tantos mares cruzados numa só onda
tivemos dias imensos da chuva oceânica
e com que calda o vestido de ir buscar lagostim
defendo flores nos cabelos creio nos espinhos do idioma
e com que véu as noivas de buscar ostras
com que choro segue a trama do momento
central puxado de cordões da solidão
aquele homem foi tragado e cuspido e repartido
pelo mar
voltou em dois e dos dois uma multidão
que nunca mais abriu a multíplice boca
com que beijo com que consolação
com que pássaro tramar agora a ida de um
dos filhos a acenada mãe que trama
com que rede me apego agora quando a
fome é imensidão nos olhos de sal?
creio então no silêncio tramado a crer
tanta areia para pouco altar
com que calda com que véu acenada a
mãe a instalar redes de milagres como
é o milagre do parto antes mesmo da crendice
gestacional?
ela tecia colares de sementes
creio
ela tecia colares de sementes e búzios
previa redes previa o amor dos peixes adentro
*Carla Diacov, São Bernardo do Campo, 1975. Amanhã Alguém Morre no Samba (Douda Correria, Portugal, 2015), A metáfora mais Gentil do Mundo Gentil, (Macondo Edições, Juiz de fora, 2016), Ninguém Vai Poder Dizer Que Eu Não Disse (Douda Correria, 2016), bater bater no yuri (livro online pela Enfermaria 6, 2017), A Menstruação de Valter Hugo Mãe (editado pelo escritor português, no projeto não comercial Casa Mãe, Portugal, 2017), Amanhã Alguém Morre no Samba (edição brasileira a ser lançada pelas Edições Macondo), Dois Pontos Pescoço X Sobreviventes (a ser lançado pela Editora Urutau)
**Tomaz Amorim Izabel, 29, tem graduação e mestrado em Estudos Literários pela Unicamp e é doutorando na mesma área na USP. É militante da UNEAfro Brasil. Além de crítica cultural, também escreve poesia [tomazizabel.blogspot.com] e coedita o blog Ponto Virgulina de traduções literárias. Publicou traduções para o português de Franz Kafka e Walt Whitman