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A médica feminista Ana Reis analisa contribuição do livro #Parem de nos matar! para a reflexão de pessoas brancas sobre seus privilégios: "Eu conhecia muitas dessas histórias, minha timeline sangra todos os dias, repleta de massacres. Mas Cidinha tem sempre uma abordagem que incomoda mais, justamente por mexer com a limitação do olho cego com que a branquitude me aleijou"
Por Ana Reis*
Conheci Cidinha da Silva em Salvador, na noite do lançamento do seu segundo livro, Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor!.
Luiza Bairros tinha me dado a dica do evento, um sarau, com a saudação feita pelo professor Ubiratan Castro, um querido de toda a gente, e um diálogo instigante entre Luiza e Cidinha.
Logo que acabou a mesa, Luiza, como de costume, saiu para fumar o seu ansiado cigarro. Com meu livro autografado “Para a Ana, esse Tambor que quer fazer barulho por aí. Um barulho bom, espero” juntei-me a ela, naquela esperada esticada para algum lugar de cerveja gelada e aipim frito sequinho.
A vida política e cultural de Salvador, mais que outras cidades onde vivi, não é completa sem os encontros pós. É nas mesas mais eloquentes, sem os inevitáveis enquadramentos das reuniões que acontecem as conversas inovadoras, mais soltas, e onde as amizades se fazem mais presentes que as alianças. Entre antirracistas e feministas, os afetos têm peso, cumplicidades.
Quando Cidinha chegou percebi que não viria mais ninguém. Era pra ser um encontro entre as duas. Mas não resisti a perguntar se podia ir também. Generosamente fui, mais uma vez, acolhida. E sem saber, testemunhei um momento particularmente especial para as duas.
Calada, ouvias as duas cheias de prazer pelas realizações de Cidinha, afirmando-se como escritora, batalhando o seu talento. Luiza abençoando.
Essa foi uma das vezes em que percebi o que significa conviver com amigas negras. Amigas que generosamente abrem espaço para que eu possa aprender, com suas didáticas silenciosas, passo a passo como entrar na intimidade protegida, sem esse à vontade automatizado que nos ensinaram desde o nascimento, e que a cada instante nos é reiteradamente bombardeado por todos os meios, até que se torne inconsciente e naturalizado.
O à vontade da branquitude, feita de uma auto referência arrogante, como se fossem nossos, todos os lugares no mundo.
Eu entendo perfeitamente o que são espaços protegidos. Quando feministas nos reunimos para compartilhar nossas alegrias e nossas dores no mundo patriarcal, não queremos homens por perto. Nem aqueles que se dizem feministas. Sempre falta muito para serem feministas. E não, não é racismo nem machismo às avessas. São espaços de respiro, refúgios onde não se tem que explicar, que pedir para não interromper, para não vir com a arrogância que nem é percebida.
Para nós, mulheres brancas de classe média minimamente eXclarecidas, ( assim mesmo, com um x colocando no passado a clareza como sinônimo de saber) a cegueira para o racismo não deveria ser tão naturalizada, porque você sabe, se tiver um mínimo de consciência, que nem todos os lugares são seus. Nem todos são lugares seguros. Sobretudo se você for uma feminista a sério.
Lendo agora o #Parem de nos matar!, sinto como ainda falta para ser uma antirracista a sério.
Cidinha da Silva, nas suas crônicas, “histórias duras mas que precisam ser contadas”, como ela escreveu no autógrafo, traz as mortes, as chacinas, o genocídio da população negra, a que assistimos diariamente, mas os reescreve materializando corpos verdadeiros, com nomes e sobrenomes.
Eu conhecia muitas dessas histórias, minha timeline sangra todos os dias, repleta de massacres. Mas Cidinha tem sempre uma abordagem que incomoda mais, justamente por mexer com a limitação do olho cego com que a branquitude me aleijou. Cabe aqui a palavra. É um aleijão, aquele mesmo que Gil bradou em Barracos da Cidade.
Esse incômodo em gente branca é a tarefa cumprida dos textos, que trazem o olhar preciso, contundente mas também finamente irônico quando retrata situações corriqueiras, aquelas onde o racismo se esconde se fazendo de inexistente.
Penso que esse tempo da implosão das máscaras que estamos vivendo abre também para o tempo de refundação. E a urgente refundação do Brasil começa por abrirmos os olhos cegados.
Asseguro que abrir o olho fechado para esse óbvio que é o racismo estruturante, por difícil que seja, faz da gente uma pessoa melhor. Temos que encarar o legado histórico terrível que pesa sobre nossas trajetórias.
É duro ver o quanto nossos lugares são feitos de privilégios. E quanto mais abrimos o olho, mais vergonha temos. Mas não há mais como esconder essa vergonha e nos livrarmos dela, não implica só em pedir perdão, pois devemos aos negros muito mais que cotas. Significa abrir espaços, abrir mão dos privilégios, aceitar e sobretudo provocar os deslocamentos.
Em tempos de refundação, a coleção de crônicas do #Parem de nos matar! é uma oportunidade de letramento racial. É uma entrada preciosa no mundo visto pelo olhar negro, para ouvir a imprescindível narrativa que falta nessa floresta de narrativas brancas. Uma escuta que é transformadora.
Para construirmos outras casas, com instrumentos outros que não os dos amos, como ensinou Audre Lorde.
Cidinha da Silva nos oferece esses instrumentos, com elegância e talento, como se faz em boa literatura.
*Ana Reis é médica e feminista.