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Uma história sobre chocolates, drag queens e a experiência de conviver com outra versão de si mesmo
Por Maíra Streit
Fotos de Arnaldo Saldanha
Sexta-feira. Ela entra no bar Beirute com botas até as coxas, boina, vestido e cabelos cuidadosamente desgrenhados em uma peruca branca que lembra um enorme algodão doce. Com maquiagem perfeita, andar rebolativo e um acervo infindável de piadas de duplo sentido, se anuncia: “Penetrandooo...”. Interessado, um homem pergunta: “Quantos bombons vêm no pacote?”. “Eu só vendo de quatro”, responde ligeira.
As trufas, organizadas em uma cesta, têm para todos os gostos: brigadeiro, prestígio, casadinho, amendoim. Mas um dos carros-chefes é uma em formato fálico, recheada de leite condensado e vendida com fitas coloridas e um adesivo escrito “Felicidades”. O pênis de chocolate é passado ao cliente na embalagem, com discrição. “Se tiver criança por perto, diga que é uma pamonha”, sugere, arrancando gargalhadas gerais.
A drag queen com ar de celebridade é parada para fotos, elogios, e se despede com passos firmes, interrompidos, vez ou outra, para ajeitar os seios falsos. A situação é comum nos eventos e festas de que participa, mas nem tudo é só glamour. Longe dos holofotes, é hora de se despir do papel e dar espaço para que outra pessoa tenha a oportunidade de, também, ocupar o seu lugar.
Afinal, por trás da personagem Allice Bombom, é Alexandre quem limpa a casa, paga as contas e prepara o terreno para que a drag possa brilhar. “Porque ela não vai para a cozinha, não, é muito fina. O bom é que eu sei onde ela guarda o dinheiro”, brinca.
Do lado de cá
Alexandre Loyola, de 46 anos, costuma dizer que veio ao mundo para desafiar o princípio da física que determina que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço. Há mais de duas décadas, ele empresta parte de si para Allice, que parece ter ganhado vida própria desde que foi criada. Os dois pensam, falam e se comportam de maneiras tão distintas que precisam entrar diariamente em um acordo em nome da boa convivência.
Ele, nascido em 17 de março, é um pisciano tímido, sensível, de gestos contidos e voz suave. Ela, que estreou na praça em 28 de novembro, faz jus à fama da sagitariana cheia de energia e aventureira, sempre em busca de uma novidade. O encontro de ambos se deu em uma festa, que prometeu entrada grátis para quem ousasse se vestir de drag queen. Alexandre, junto com outros amigos, aceitou o desafio.
E como toda grande história é feita de acasos, ele trabalhava com a fabricação de bombons caseiros e, certa vez, pegou uma encomenda de mil chocolates, mas se confundiu com as datas e percebeu que a cliente queria, na verdade, para a semana seguinte. Com os produtos prontos, precisou agir rápido para não perdê-los. Decidiu, então, se transformar em drag de novo e vender o estoque pelos bares de Brasília para chamar mais a atenção.
A ideia deu tão certo que a personagem se tornou um ícone da capital federal. Desbocada e de humor ferino, transita entre os estabelecimentos mais badalados da noite, de mesa em mesa, conquistando olhares e risadas por onde passa.
A pele que habito
Alexandre veio de uma família numerosa da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, e cresceu em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Não tem boas lembranças do pai, falecido, que enfrentava problemas com alcoolismo e era violento com a esposa. Já a mãe, dona de casa e evangélica, é uma referência até hoje e acompanha por fotos, à distância, o trabalho do filho artista.
Ainda bem jovem, ele serviu na Marinha, mas teve que deixar o Rio para ajudar uma irmã com depressão pós-parto. Há 28 anos, fez as malas rumo ao Distrito Federal e ali acabou ficando. Quatro anos depois de chegar, aprendeu a fazer bombons ao atuar em uma loja de decoração de festas que abriu no mesmo prédio em que morava. Dedicado ao novo emprego, fez cursos, se apaixonou pelo ofício e seguiu depois, sozinho, aprimorando técnicas e fazendo sua fama no mercado.
Assistia na TV aos “shows de transformistas” nos programas de Silvio Santos e nem imaginava que um dia faria sucesso de brincos e salto alto. Hoje, no entanto, faz questão de explicar que existe muita confusão entre o que é ser drag e ser travesti. “Dependendo da produção, eu pareço uma mulher, mas evito. Eu procuro ficar o mais extravagante possível. A gente é o exagero da mulher. Se ela passa um batom, a gente vai passar um batom e um glitter. Eu respeito pra caramba minhas amigas, mas não gosto quando me chamam de traveco. Só não reclamo porque é motivo para briga, discussão e até coisa pior, uma violência”, relata.
Discriminação
Protegido pela família, a homossexualidade nunca foi um dilema, embora reconheça que o preconceito, às vezes, seja inevitável. Há algum tempo, um cunhado dele foi à Justiça para conseguir a guarda da filha e disse que não era saudável para a criança conviver com o tio, que se apresentava como drag queen. O juiz acatou o argumento e o episódio ainda vem à memória de Alexandre com um gosto amargo. Atualmente, ele leva uma vida reclusa no seu apartamento e, ao contrário de Allice, é avesso à agitação e troca qualquer boate por um bom filme, nos instantes roubados da rotina estafante.
Faz o 6º semestre do curso de Artes Cênicas e, sonhador, almeja levar suas criações a espetáculos da Broadway, em Nova York, mas, em seguida, zomba de si mesmo dizendo que na realidade, do exterior, nunca passou de uma visita ao Paraguai. Reclama um pouco das drags novas, que seriam mais desunidas e competitivas do que as de antigamente. Veterano, ele aconselha: “Isso deixa a classe mais sofrida ainda”.
Como militante LGBT, já se arriscou pela política e chegou a se lançar como deputado distrital pelo PRTB em 2010, mas desistiu do pleito para dar chances a outro candidato. Com as eleições de 2014, decepcionado, resolveu que deixaria o partido após as declarações homofóbicas do líder da legenda, Levy Fidelix, que, durante um debate na televisão, defendeu "tratamento psicológico" aos gays, entre outras barbaridades.
Eterno vai e vem
O desabafo acontece em frente ao espelho do quarto de Allice durante a preparação para o momento em que ela surgiria, esplendorosa, em mais uma aparição pública. E se engana quem pensa que eles dividem o mesmo dormitório.
O dela – revestido por adesivos coloridos de flores, duendes e borboletas – é um universo de plumas, paetês, figurinos, maquiagens e autorretratos. O dele, do outro lado de um estreito corredor, é mais sóbrio e pouco varia entre os tons de preto e branco.
Questionado se já surgiu algum conflito entre o criador e a criatura, ele conta que o tratamento recebido pelos dois é diferente e incomoda. “Ali, sou a estrela do momento. Quando viro Alexandre, ninguém fala comigo, ninguém me conhece. Desmonto no camarim e saio pelo mesmo espaço meio borocochô, meio tímido e sem graça esperando alguém me abraçar. Aí entra a questão psicológica. Se não se controlar, pira mesmo”, desabafa.
O terço atrás da porta da sala revela a religiosidade, sempre presente. Alexandre conta que é uma pessoa de muita fé. Ele vai à missa e reza toda vez que acorda ou sai de casa. No rol dos santos, não nega a preferência por Santa Bárbara: “Ela arrasa”.
Metades
Ainda diante do espelho, o desenho do pincel vai modificando o seu rosto, que ganha contornos de boneca. A personalidade também muda gradativamente, a cada novo adereço. “Rola uma piração, é meio loucura. Durante a produção, eu não penso mais como Alexandre. Penso como Allice”, conta enquanto esconde o cabelo com uma fita adesiva para ajudar a fixar a peruca.
Como as duas faces de uma mesma moeda – opostas, mas que nunca se separam – os dois seguem em uma alternância de protagonismo e se apoiam, um no outro, à procura de equilíbrio. Com um último retoque no batom, ela se levanta, pronta para ser recebida pela sociedade com olhos de exclamação. Pega sua cestinha e, à la Chapeuzinho Vermelho, sai pela cidade levando seus doces e distribuindo sorrisos.
Filme
Em 2016, a diretora Fernanda Carvalho levou às telas de cinema o curta-metragem ALLICE, sobre a história de Alexandre Loyola e sua personagem. Onde começa um e termina o outro? De que forma eles estão interligados? Que tipo de reflexões são feitas a partir dessa complexa relação? Essas são algumas questões propostas pelo documentário. Por enquanto, o filme ainda não está disponível na internet. Para assistir ao teaser, clique aqui.