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“Na verdade, é sobre controle, meu corpo, minha mente. Sobre quem ia ser o dono. Eles? Ou eu? Eu não sou mulher de um homem só. E ponto”.
Por Tomaz Amorim*
Há duas semanas estreou na Netflix a série “Ela quer tudo” (She’s Gotta Have It), criada e dirigida por Spike Lee e baseada em seu filme homônimo de 1986. A série será analisada aqui na coluna na semana que vem. Antes disso, o comentário que segue é sobre o filme (também disponível no Netflix), primeiro longa-metragem de Spike Lee que, com seu grande sucesso de público e crítico, alavancou a carreira do diretor e transformou a representação negra no cinema estadunidense, até então restrita a papéis de criminosos e prostitutas. O filme de Lee foi revolucionário na época e ainda hoje é impressionante: um filme artístico negro, de um diretor estreante, com uma protagonista mulher que não está tentando buscar o homem da sua vida, mas que explora sua liberdade sexual com três amantes diferentes.
As cenas urbanas e a cuidadosa fotografia em preto e branco ajudam a construir um cenário delicado e vivo. Spike Lee encontra a “Manhattan” de Woody Allen, mas mostra seus ângulos periféricos. A excentricidade e a grandeza das pontes e parques que Allen evoca são substituídas por Lee pelos metrôs e praças abandonadas. E nestes espaços há beleza. É numa destas praças que se dá a única cena colorida do filme, a decoração de aniversário que se mistura ao colorido do grafite no monumento e à apresentação dos dançarinos de jazz. Tudo se encaixa, as pessoas nas pessoas e na cidade. Para além da estética, o filme também é militante nos mais diversos sentidos. Fazendo cinema delicado e ao mesmo tempo experimental (misturando fotos, câmera na mão e personagens quebrando a quarta parede), ele tece relações de raça, classe e gênero contando uma história quase sempre leve e o tempo todo instigante. O protagonismo feminino e sua diversidade de formas de afetividade é marcada pela protagonista que não é uma subalterna, mas uma artista respeitada. Suas amigas vivem vidas diferentes e marcam outras possibilidades de expressão identitária e sexual como a amiga heterossexual monogâmica e a amiga-flerte lésbica. A negritude é celebrada na perfeição do jazz, na variedade das formas de relacionamento e expressão (da cultura refinada e elitista de Greer Childs ao estilo despojado e subversivo de Mars Blackmon), na beleza dos corpos humanos entrelaçados em poses eróticas ou exercitando-se ou posando ou tocando baixo ou caminhando. Sua beleza é elevada pelo cinema de Lee e o cinema em si é elevado por sua beleza.
Na última década não faltaram filmes sobre as dificuldades de relacionamentos na transição para a vida adulta: “Juno”, “Frances Ha”, “Azul é a cor mais quente”, “As vantagens de ser invisível”, “Cisne Negro” ... Toda uma lista de comédias românticas ou filmes melancólicos sobre as impossibilidades de se ter o que se quer - especialmente como mulher. Pois a história de “Ela quer tudo” é a história de uma mulher que quer tudo e, conseguindo ou não, assume seu direito de querer. É um filme delicado sobre o desejo e suas limitações, mas, ao contrário do que acontece frequentemente, que não recai em um moralismo disfarçado de lição de sabedoria. Quase todos os personagens (em geral masculinos) tentam mostrar que o que para eles é normal, a vida não monogâmica, relacionar-se sexual e afetivamente com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, no caso de Nola Darling, a protagonista, deve ser sintoma de uma doença, de um déficit, de um desvio, de uma relação ruim com o pai, falta de caráter ou outra forma de patologia. (Seria interessante estabelecer uma relação, deste ponto de vista da patologização, com o também delicado, ainda que de outra forma, “Ninfomaníaca” de Lars von Trier).
Mas o que “Ela quer tudo” mostra é a complexidade da protagonista e a satisfação honesta com que as diferentes relações se completam harmoniosamente na vida e no desejo dela. A fina ironia com que Spike Lee constrói as cenas não deixa dúvida sobre a hipocrisia social: os mesmos homens que recitam os mais hilários e terríveis elogios para qualquer mulher na rua (o homem número 6 diz: “Neném, você é tão gostosa, que eu beberia uma banheira cheia da água do seu banho”), não conseguem compreender (e talvez seu espanto seja verdadeiro!) como Nola também deseja, sem achar que haja algo de errado. Mas seria um erro dizer que ela deseja o mesmo que eles, já que seu desejo não é construído apenas socialmente, como busca pelo reconhecimento dos outros (homens), mas a partir de si, de uma busca que o filme tenta ironicamente, em forma quase de pseudodocumentário, entender: ela quer mais, ela quer tudo, ela precisa ter tudo e isso é retratado como uma obviedade quase misteriosa - é dela para ela. A assertividade da protagonista diante dos seus amigos e parceiros pode passar a impressão de arrogância, mas não se trata disso. Ela não mente, é honesta e trata com cuidados diferentes e específicos cada uma das relações que cultiva. Ela convida os três para passarem uma Noite de Ação de Graças juntos, mas os frágeis egos masculinos correm em estragar tudo através da disputa egoísta pela atenção que ela gostaria justamente de compartilhar com os três.
Qualquer risco de hipersexualizar ainda mais a mulher negra se soluciona na estratégia do filme em não retratar aquele olhar clássico, aquele apenas dos que a desejam, mas, finalmente, o dela mesma. É um filme sobre o desejo de uma mulher negra e sua relação com o desejo alheio. Sujeito desejante, portanto, e não objeto do desejo alheio. Reflexão fundamental sobre a liberdade nos relacionamentos, o controle social sutil dos desejos, principalmente, mas não apenas, do corpo negro feminino. Impressiona que o filme seja de 1986 e não de 2017 porque tudo nele fala como se nada tivesse mudado, como se a situação social ainda fosse parecida com a de Nola: convicta da honestidade e legitimidade dos seus desejos, mas confusa por uma sociedade que finge não compreendê-la. O fato de que os filmes recentes sejam tão diferentes neste sentido, lições de como se conformar com a frustração do desejo, é sintomático. A fala de Nola no monólogo final apresenta uma perspectiva que foi silenciada por tempo demais e que, quem sabe, possa tentar novamente ressoar nos corações contemporâneos: “Na verdade, é sobre controle, meu corpo, minha mente. Sobre quem ia ser o dono. Eles? Ou eu? Eu não sou mulher de um homem só. E ponto”.
*Tomaz Amorim Izabel, 29, tem graduação e mestrado em Estudos Literários pela Unicamp e é doutorando na mesma área na USP. É militante da UNEAfro Brasil. Além de crítica cultural, também escreve poesia [tomazizabel.blogspot.com] e coedita o blog Ponto Virgulina de traduções literárias. Publicou traduções para o português de Franz Kafka e Walt Whitman
Fotos: Cenas do filme