Um banner estendido no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília, no dia 20 de fevereiro, deixou mais uma vez explícita a aliança que, até então, sempre se desenrolou nos bastidores no Brasil: “O Partido Liberal e as big techs unidos pela liberdade de expressão”, dizia o anúncio.
A associação entre o PL e as principais big techs, como Meta, Google, TikTok, X e Kwai, foi amplamente divulgada durante o evento. As empresas marcaram presença dias após recusarem o convite da AGU, conforme reportado pela Fórum. Banners imponentes e telas digitais projetavam slogans como “as maiores big techs do mundo com o maior partido do Brasil”.
A mensagem chegou a gerar um certo desconforto entre as plataformas digitais, que, apesar de compartilharem muitos interesses estratégicos com a extrema direita, buscaram evitar uma associação direta. A relação entre as empresas de tecnologia e a direita já viveu momentos de tensão no exterior.
Há quatro anos, após a invasão do Capitólio, empresas de tecnologia romperam com figuras da direita radical, bloqueando Donald Trump e restringindo conteúdos conspiratórios. Após Trump vencer as eleições, as big techs se declaram ao governo americano, como também mostra essa reportagem da Fórum. As tentativas de regulamentação da Europa e do Brasil sobre as redes sociais reacendeu essa conexão e elas entraram na luta pelo seu lucro.
Apesar da parceria entre o PL e as big techs ter sido anunciada de forma pública nos cartazes do 1º Seminário de Comunicação do PL, seus primeiros passos se deram no ano de 2023, com a vitória do impedimento da aprovação do PL das Fake News (PL 2.630/2020). Antes desse ano, bolsonaristas já se aproveitavam da livre política dos algoritmos das plataformas para impulsionar cada vez mais conteúdos falsos sobre a esquerda, o que elegeu Bolsonaro em 2018 e causou grande turbulência nas eleições de 2022, quase culminando em um golpe de Estado em 2023.
O êxito de barrar o PL das Fake News representou não apenas um bloqueio legislativo, mas uma virada na forma como as grandes empresas de tecnologia se relacionam com o Congresso. O lobby, que antes era centralizado na Frente Parlamentar Digital, agora se fragmentou, buscando influenciar mais diretamente a comunicação nas redes sociais de políticos, especialmente os ligados a grupos mais radicais.
De acordo com a agência de checagem Aos Fatos, “a aliança entre as big techs e a extrema direita impulsionou a retórica de que o Brasil vive sob um regime de censura, acusação que ultrapassou o debate interno e ganhou contornos de crise diplomática quando passou a ser usada por aliados de Donald Trump em ataques ao Brasil”.
O Supremo Tribunal Federal (STF) se tornou o principal alvo dessa ofensiva. O tribunal lida com questões "sensíveis" para a extrema direita, como o acompanhamento do inquérito sobre as milícias digitais e o julgamento iminente sobre a tentativa de golpe que culminou nos ataques de 8 de janeiro de 2023 a Brasília.
A Corte também se prepara para decidir sobre a responsabilidade das big techs no Brasil, com o julgamento sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que aborda a responsabilização das plataformas pelos conteúdos publicados por seus usuários. Essa decisão pode acirrar a pressão para que o Congresso volte a discutir a regulação das redes sociais.
A dificuldade em avançar com a regulação beneficia diretamente as big techs e a direita radical, permitindo a disseminação contínua de desinformação e discursos de ódio.
Os principais acontecimentos que marcaram a aliança entre um lado do espectro político e as big techs até o momento foram o “PL da Censura”, a “Frente Parlamentar Digital”, a “guerra de Hastaghs”, a ofensiva da Meta e a ação da Rumble contra Moraes, segundo uma apuração do Aos Fatos:
O “PL da Censura” e o “protesto” das plataformas digitais
A aprovação do regime de urgência para a tramitação do “PL das Fake News”, em 25 de abril de 2023, deu início a uma série de esforços por parte das plataformas digitais para tentar barrar a proposta na Câmara dos Deputados.
Gigantes como Google, Meta e Telegram emitiram declarações contra o projeto, muitas vezes distorcendo seu conteúdo. Uma das alegações falsas era de que a proposta concederia ao governo poderes de censura.
Essa narrativa acabou sendo adotada por parlamentares e influenciadores de extrema direita, com o apoio ativo de grupos de lobby das grandes empresas de tecnologia.
Isso ficou claro em um vídeo do canal Te Atualizei, onde a apresentadora Bárbara Destefani criticou o projeto enquanto exibia na tela trechos de um panfleto criado pelo Instituto Cidadania Digital (ICD), uma organização financiada por entidades de tecnologia, como a camara-e.net (Câmara Brasileira da Economia Digital).
O panfleto, intitulado “9 Motivos para debater o PL 2.630/2020 em uma comissão especial”, continha conceitos que foram abraçados pela extrema direita, incluindo a expressão “Ministério da Verdade”, usada para descrever o órgão regulador previsto na legislação.
Um relatório do Instituto Democracia em Xeque, por exemplo, mostrou que o vídeo do Te Atualizei sobre o “PL das Fake News”, que agora está fora do ar no Brasil, foi um dos mais promovidos pelo YouTube durante a tramitação do projeto. Essa promoção aconteceu, apesar do canal estar bloqueado pelo STF na época.
A “Frente Parlamentar Digital”
Durante a discussão do “PL das Fake News”, a principal representação das big techs no Congresso era a Frente Parlamentar Digital, cujo secretariado estava sob a responsabilidade do ICD, em um modelo inspirado na bancada ruralista.
Esse grupo foi responsável por organizar, por exemplo, uma viagem de parlamentares ao Vale do Silício em novembro de 2022, utilizando recursos públicos para levar um grupo de deputados a conhecer as sedes das principais empresas de tecnologia.
Durante a tramitação do PL 2.630/2020, membros da frente se opuseram ao texto do relator da época, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), propondo alternativas. O presidente da frente na época, Lafayette de Andrada (Republicanos-MG), chegou a apresentar um substitutivo.
No entanto, em agosto de 2023, o ICD anunciou que deixaria a secretaria-executiva da Frente Digital, o que resultou na dissolução da bancada. Após esse desmonte, o instituto — que passou a se chamar Conselho Digital em 2024 — começou a diversificar seus interlocutores no Congresso.
O lobby das big techs passou também a operar através de outros colegiados, como a Frente Parlamentar pelo Brasil Competitivo, que organizou uma viagem de deputados e senadores aos Estados Unidos durante as discussões no Senado sobre a regulação da inteligência artificial.
“Guerra das hashtags”
Enquanto parlamentares da direita moderada ou do Centrão assumiam a responsabilidade de apresentar emendas e levar os pedidos das big techs ao plenário, a ala mais extremista do Congresso — especialmente do PL — utilizava suas redes sociais para promover os interesses das empresas.
Com a mesma estratégia que ajudou a bloquear a discussão do “PL das Fake News”, propostas de regulação digital começaram a sofrer ataques incessantes de parlamentares como Nikolas Ferreira (PL-MG), Marcel Van Hattem (Novo-RS), Gustavo Gayer (PL-GO) e Kim Kataguiri (União-SP), entre outros.
O velho argumento de que a regulação poderia levar à censura foi novamente utilizado, mesmo em relação a projetos que não tinham intenção de remover conteúdos das redes, como o PL 2.338/2023, que trata da regulação da inteligência artificial e foi debatido no Senado no ano passado.
No contexto do “PL das Fake News”, setores da extrema direita estavam diretamente interessados em evitar a aprovação do projeto, que aumentava a responsabilidade das plataformas por conteúdos criminosos compartilhados pelos usuários, como racismo, incitação a golpes ou ameaças à saúde pública.
Entretanto, o compromisso desse grupo com as big techs foi além de uma questão de interesses alinhados. Isso ficou claro com o PL 2.370/2019, que abordava a remuneração dos direitos autorais de artistas e jornalistas pelas plataformas e que Nikolas Ferreira passou a chamar de “PL da Globo”.
A mesma estratégia foi usada para atacar outros projetos que poderiam afetar os lucros das grandes empresas de tecnologia, como as propostas de regulação das plataformas de streaming. As campanhas não apenas as vincularam a interesses da grande mídia, mas também espalharam alegações de que as propostas resultariam em cobranças contra usuários ou criadores de conteúdo.
Twitter Files Brazil
No ano passado, o apoio da extrema direita brasileira aos interesses das empresas de tecnologia foi correspondido com a participação ativa de um dos maiores magnatas do setor, Elon Musk, proprietário do X e bilionário autodeclarado de extrema direita, nas campanhas de ataque ao STF.
Após o episódio conhecido como Twitter Files Brazil, que revelou supostas ordens do Judiciário brasileiro para remoção de conteúdo no X, Musk começou a atacar publicamente o ministro Alexandre de Moraes.
O empresário sul-africano também anunciou que desobedeceria as ordens do STF e restabeleceria as contas suspensas pela Justiça brasileira, o que levou Moraes a incluí-lo no inquérito das milícias digitais e a aplicar uma multa diária caso a plataforma seguisse com a ameaça.
No final de agosto, o conflito culminou na suspensão do X, determinada por Moraes após Musk anunciar o fechamento do escritório da plataforma no Brasil e se recusar a nomear um representante legal no país.
O episódio foi amplamente explorado pela campanha de Donald Trump, que propagou a alegação de que o Brasil teria se tornado uma ditadura apoiada por Joe Biden e Kamala Harris.
Ofensiva da Meta contra o jornalismo e as leis
Com a vitória de Trump nos Estados Unidos, diversas empresas de tecnologia começaram a seguir a linha adotada pelo X, intensificando seus discursos para garantir uma boa convivência com o novo governo americano.
O exemplo mais emblemático foi o da Meta, dona do Facebook, Instagram e WhatsApp. Em 7 de janeiro, Mark Zuckerberg, CEO da empresa, comunicou mudanças nas políticas de moderação de conteúdo e o término do programa de checagem de fatos nos Estados Unidos.
A empresa, ao se aproximar da extrema direita americana, anunciou que as mudanças teriam impacto no tratamento de temas como gênero, orientação sexual e imigração — tópicos chave para a base de Donald Trump.
Ao anunciar as mudanças, Zuckerberg fez uma declaração indireta ao STF, sugerindo que países latino-americanos contavam com "tribunais secretos" focados em remover conteúdos das redes sociais.
A postura da Meta de atacar o STF reforçou a luta das plataformas contra a regulação, não apenas no Brasil, mas também em diversas regiões do mundo — da Austrália ao Canadá e pela União Europeia.
Rumble
O capítulo mais recente da aliança entre a extrema direita e as grandes empresas de tecnologia ocorreu em fevereiro, quando a plataforma de vídeos Rumble e a empresa de mídia de Donald Trump processaram o ministro Alexandre de Moraes na Justiça dos Estados Unidos.
As empresas alegam que Moraes teria violado a soberania e as leis norte-americanas ao exigir a suspensão das contas do blogueiro foragido Allan dos Santos, que haviam sido reativadas após o Rumble anunciar a volta de seus serviços ao Brasil.
Pressão sobre a Anatel
Uma reportagem da Fórum também mostrou que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) é alvo de uma campanha promovida pela direita brasileira junto às big techs para beneficiar a Starlink, empresa do bilionário de extrema direita Elon Musk, que oferece internet via satélite.
Há mais de um ano, a empresa aguarda uma decisão da Anatel sobre um pedido para expandir seus serviços no Brasil e nesse contexto, uma campanha de lobby busca contaminar o debate, dando a entender que a Anatel estaria agindo contra a Starlink em resposta às provocações de Musk às autoridades do Brasil. Em outubro do ano passado, a Anatel precisou desmentir informações falsas que circulavam, alegando que a agência havia decidido interromper os contratos com a Starlink.
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Outra reportagem da Fórum aborda a política do "colonialismo digital" que as big techs praticam em outros países. Já não são apenas empresas. Embasados no discurso da liberdade “liberdade de expressão” e das forças de oferta e demanda, os gigantes digitais fortalecem e expandem seu poder econômico ao criar “regras” e moldar os rumos da civilização através das políticas que implementam nas próprias plataformas digitais, sem qualquer transparência dos processos. Informação e dados pessoais se tornaram mercadorias estratégicas e já colocam em risco a soberania de diversos países.
Principalmente, aqueles localizados no Sul Global. Muitos especialistas observam assimetrias nas relações das big techs com países subdesenvolvidos, promovendo a subcidadania, o ódio, a proliferação de conteúdos falsos e desigualdades sociais e econômicas da dataficação em territórios periféricos, o que vem sendo considerado como as novas estratégias coloniais do Norte Global, como destacam estudos investigativos de coalizões pelo direito digital e o livro pioneiro no assunto, “Colonialismo de Dados e Modulação Algorítmica”, escrito por João Francisco Cassino, Joyce Souza e Sérgio Amadeu da Silveira.
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