Muitos ainda têm se surpreendido com o poder que as chamadas big techs vêm acumulando no mundo “globalizado”. No segundo governo Trump, isso ficou mais que explícito. Uma reportagem da Fórum, inclusive, mostrou que a riqueza de milionários aumentou três vezes mais rápido em 2024, todos eles donos de empresas de tecnologia, segundo o relatório da Oxfam "As custas de quem? – A origem da riqueza e a construção da injustiça no colonialismo", além de dar de antemão o investimento milionário direto dos donos das big techs à posse do presidente republicano.
As grandes corporações, que atuam nas áreas de comunicações, informação, ações de mercado e tecnologia digital avançada, expõem claramente a face concentradora e oligopolista do capitalismo contemporâneo. Isso se acentuou com o favorecimento de políticas de ódio, a personalização dos algoritmos e o lucro através da desinformação, como também explica essa reportagem da Fórum.
Já não são apenas empresas. Embasados no discurso da liberdade “liberdade de expressão” e das forças de oferta e demanda, os gigantes digitais fortalecem e expandem seu poder econômico ao criar “regras” e moldar os rumos da civilização através das políticas que implementam nas próprias plataformas digitais, sem qualquer transparência dos processos. Informação e dados pessoais se tornaram mercadorias estratégicas e já colocam em risco a soberania de diversos países.
Principalmente, aqueles localizados no Sul Global. Muitos especialistas observam assimetrias nas relações das big techs com países subdesenvolvidos, promovendo a subcidadania, o ódio, a proliferação de conteúdos falsos e desigualdades sociais e econômicas da dataficação em territórios periféricos, o que vem sendo considerado como as novas estratégias coloniais do Norte Global, como destacam estudos investigativos de coalizões pelo direito digital e o livro pioneiro no assunto, “Colonialismo de Dados e Modulação Algorítmica”, escrito por João Francisco Cassino, Joyce Souza e Sérgio Amadeu da Silveira.
As gigantes Microsoft, Google, X (ex-Twitter), Amazon, Ali Baba, Meta (controladora do Facebook, Instagram e WhatsApp), OpenAI e Apple, o GAFAM e outras, somam hoje um valor de mercado de cerca de US$ 10 trilhões, superior ao Produto Interno Bruto (PIB) de toda a América Latina. As políticas de diversidade e inclusão, essenciais para o desenvolvimento social e econômico em países como o Brasil, estão sendo mais do que nunca suprimidas pelas grandes empresas de tecnologia.
LEIA MAIS: Fim de programa de checagem da Meta vai agravar violência contra as mulheres nas redes sociais
LEIA TAMBÉM: Após acabar com checagem, Meta permite que gays e trans sejam rotulados como “doentes mentais”
Colonialismo de dados é a colonização moderna
Um dossiê elaborado por três organizações, a Avaaz, o Sleeping Giants Brasil e o Projeto Brief, e acessado pela Fórum, detalha as infrações praticadas pelas big techs no Brasil e pelo mundo nos últimos anos – muito antes do retorno de Trump, em aliança com os barões do Vale do Silício. O relatório “Tudo que Meta, X, Google e Tiktok não querem que você saiba” compila e destaca os episódios mais sombrios e reúne indícios claros do dano já causado por essas empresas à política e à sociedade.
O dossiê completo que também pode ser acessado neste link, destaca os pontos principais das denúncias e violações, muitas vezes tratadas como uma ocorrência isolada das empresas e que somam ano a ano:
1) Estímulo a comportamentos nocivos e violentos a crianças e adolescentes: De acordo com os Facebook Papers, pesquisas internas do Instagram revelaram que a plataforma piorava os pensamentos suicidas e de automutilação em 13,5% das jovens, afetava negativamente os transtornos alimentares em 17% e prejudicava a autoestima de uma em cada três meninas; uma pesquisa de 2023 também mostrou que quase 94% dos brasileiros acreditam que as redes sociais são um ambiente inseguro para crianças e adolescentes, e 74% da população acredita que a falta de regulação das redes sociais contribuiu para ataques em escolas no país. E o problema também atinge adultos: Um time de pesquisadores da própria Meta descobriu que 1 em cada 8 usuários do Facebook têm seu sono, trabalho, responsabilidades familiares e relacionamentos gravemente impactados pelo uso da plataforma.
2) Regras de moderação vagas, mal implementadas e que permitem censura e manipulação pelas empresas: a Meta reconheceu a falha em seu sistema, admitindo que as regras não eram aplicadas de forma consistente. Ao mesmo tempo, empresas como Google, TikTok e a própria Meta se beneficiam da disseminação de conteúdo falso e radical, como aconteceu nos atos golpistas de 8 de janeiro;
3) Falta de ação contra criminosos nas plataformas: Em janeiro, uma onda de desinformação sobre o Pix, incluindo uma falsa "taxa", facilitou fraudes em massa e mais de 1.770 anúncios falsos nas plataformas da Meta, segundo o NetLab da UFRJ;
4) Robôs e perfis falsos que manipulam debate público: Embora milhões de contas falsas sejam apagadas anualmente, outras tantas continuam surgindo de forma mais sofisticada. Big techs falam em dificuldade de estimar o número de robôs e contas falsas, e as empresas admitem problemas crescentes, agravados pelo avanço da inteligência artificial;
5) Mentiras para reguladores, investidores e usuários e envolvimento ativo em disputas políticas: Na Europa, a Meta enfrenta um processo por abuso econômico pela compra do WhatsApp, tendo mentido e sido multada por isso. Nos EUA, aceitou um acordo por enganar investidores sobre o uso indevido de dados. No Brasil, a empresa foi ainda mais agressiva, espalhando desinformação nos principais jornais para barrar o PL 2630, com campanhas de pânico e grande investimento para influenciar o debate público – e teve sucesso;
6) Coleta de dados privados mesmo quando os usuários não dão permissão: com apenas três curtidas, o Facebook é capaz de identificar gostos, preferências e a´te se uma pessoa é homossexual. Além disso, o Google já permitiu que parceiros acessassem e-mails privados de usuários. E até os dados de crianças não estão protegidos;
7) Capacidade de descobrir informações confidenciais de usuários mesmo se eles não as fornecem: a captação e exploração de informações pessoais dos usuários são o "novo petróleo" das big techs. Muitos países já possuem leis que impõem limites à coleta de dados, visando proteger a privacidade e segurança dos cidadãos. No entanto, devido ao alto valor econômico dos dados, grandes empresas de tecnologia frequentemente ignoram essas regras. O Google chegou a um acordo milionário após ser acusado de coletar ilegalmente dados de crianças. O TikTok foi penalizado em US$ 15,9 milhões por práticas indevidas envolvendo dados de jovens. A Meta desembolsou bilhões de dólares por conceder acesso não autorizado a dados pessoais de usuários, e o X (antigo Twitter) recebeu multa de US$ 150 milhões pelo mesmo motivo.
8) Algoritmos que conduzem pessoas para o extremismo: O dossiê menciona o estudo do Counter Extremism Project, que expõe como o algoritmo do YouTube favorece a desinformação, teorias da conspiração e extremismo. O mesmo ocorre com o Twitter, TikTok e Meta.
9) Lucro com desinformação: Meta e TikTok aprovam anúncios com informações falsas. O Google veicula propagandas em sites de fake news, gerando receita para esses portais e para a empresa. No X, a verificação paga de contas priorizou conteúdos desinformativos, enquanto o TikTok falhou em bloquear anúncios políticos enganosos, conclui o relatório.
Geopolítica global na mão das big techs
Reuters/Folhapress / Reprodução de vídeo / Wikimedia Commons / Montagem Revista Fórum
As empresas têm atuação política. Em entrevista à Fórum, o analista de dados Edgard Piccino observou, com base no dossiê, que a influência e concentração de poder das big techs já vem funcionando como um novo tipo de colonialismo, mas digital, e que a Guerra Fria se intensifica nas redes sociais.
“Certamente estamos vivenciando um profundo colonialismo digital. A reação dos EUA e países aliados ao DeepSeek demonstra claramente a importância geopolítica da corrida tecnológica digital e da necessidade de manter sob estrito controle os algoritmos mais sofisticados”, afirma Piccino.
“Desde o escândalo do Cambridge Analytica, os dados pessoais são utilizados para influenciar a sociedade, atraindo-a para pautas políticas de extrema direita”, diz. Segundo o especialista, o recente posicionamento político de Elon Musk, Mark Zuckerberg sobre as notas da comunidade, Jeff Bezos, entre outros, vai além de meras convicções políticas, pois o que fala mais alto é literalmente a exploração de populações através de anúncios para a obtenção de lucro.
“Para isso, eles não hesitam em submeter nações inteiras aos seus interesses, desestruturando as democracias internas dos países”, completa o analista.
Essa também é uma preocupação dos pesquisadores no dossiê. “As plataformas já não são espaços neutros: seus donos escolhem os conteúdos que devem sobressair aos outros, sem transparência ou compromisso, interferindo na privacidade de usuários, na garantia de direitos e no funcionamento de governos em nome do lucro”, destacam.
“Não podemos esperar pelos próximos atos de violência, ódio, e ataques à democracia para tomar atitudes mais contundentes”
O debate sobre a regulação do tema no Brasil conta hoje com três caminhos: o julgamento no STF que discute a responsabilidade das plataformas digitais, o PL 2630 (PL das Fake News) em tramitação no Congresso e eventuais iniciativas do Poder Executivo, que estão longe de serem implementadas devido à forte resistência do Centrão e de aliados à direita.
As entidades do dossiê apresentam uma petição para que se agilize a implementação de normas reguladoras e desenvolvimento de novas tecnologias frente aos riscos da atuação política das big techs. “Não podemos deixar que os interesses bilionários dessas empresas continuem acima do bem-estar e da segurança dos brasileiros. Precisamos que nossas instituições mostrem força e responsabilidade para colocar ordem nesse cenário digital descontrolado”, reforçam os pesquisadores.
Saiba mais sobre a petição: Precisamos — e podemos — parar as Big Techs
Web: território em disputa, é preciso ir além da regulação
Cabos, satélites, servidores, celulares, minas e lixo eletrônico sustentam a internet, uma estrutura física e geolocalizada moldada por relações de poder. Quem controla cada parte? E quais territórios fornecem os minerais que possibilitam o avanço tecnológico?
Qual é o destino do lixo eletrônico? Quais valores estão inseridos nos algoritmos das redes sociais? Quem se beneficia da conectividade e quem é excluído? De que forma a digitalização facilita a vigilância? Quem exerce esse poder e quem lucra com isso? Quais os impactos dos data centers? Como enfrentar o colonialismo digital? A internet é um território em constante disputa por extração de dados, não uma mera rede de conexões como os donos das big techs vendem. Há uma concentração da informação nas grandes plataformas, o que também submete governos e pessoas a elas para se comunicarem.
Para entender como se dá o emaranhado do colonialismo moderno e digital, um projeto intitulado “Mapa dos Territórios da Internet” foi desenolvido pela Coding Rights, uma organização que traz um olhar feminista interseccional para defender os direitos humanos no uso das tecnologias, em parceria com a Rede Transfeminista de Cuidados Digitais e com o apoio da Fundação Heinrich-Böll Brasil.
A Fórum destrinchou os pontos principais deste mapa inédito:
1. Dependência e produção de tecnologia
Há dependência global da China para a fabricação de eletrônicos, que produz mais da metade dos componentes mundiais e também lidera a geração de lixo eletrônico. Os EUA aparecem como exportadores de resíduos tóxicos para países em desenvolvimento, como Índia e vários países africanos.
2. A Internet como território de poder
A rota dos cabos submarinos, que conecta o mundo digitalmente, segue o legado das grandes navegações coloniais, desfavorecendo países que foram colônias. Facebook e Google são responsáveis por 80% dos investimentos recentes em novos cabos.
3. Impactos ambientais
O consumo de energia dos data centers já representa 4% do consumo global e 1% das emissões globais de gases de efeito estufa. Exemplos como o Google, em The Dalles (Oregon), mostram o aumento expressivo no uso de recursos hídricos para alimentar seus centros de dados, um cenário que tende a piorar com a expansão das operações.
4. Exclusão e desigualdade digital
No Brasil, 62% da população tem acesso à Internet apenas pelo celular, e 32% dos domicílios rurais permanecem desconectados, afetando comunidades indígenas e quilombolas. Os moradores de favelas também enfrentam acesso precário, o que amplia desigualdades.
5. Condições de trabalho e exploração
A moderação de conteúdo e a análise de dados de inteligência artificial são frequentemente terceirizadas para países do Sul Global, como Índia, Quênia e Filipinas, em condições de trabalho abusivas, marcadas por baixos salários e problemas de saúde mental.
6. Capitalismo de vigilância
O projeto destaca como as big techs utilizam o capitalismo de vigilância para capturar e manipular dados pessoais em busca de lucro, enquanto os algoritmos são programados por uma elite homogênea – homens brancos, cisgêneros e heterossexuais – que reproduz desigualdades e apaga diversidades.
7. Poluição astronômica
A crescente proliferação de satélites de baixa órbita, como os da Starlink, já está impactando a observação do céu noturno. Com planos de lançar mais de 42 mil satélites até 2027, a poluição astronômica pode ser um problema significativo em breve.
As pesquisadoras do Coding Rights também destacam:
“Ao materializarmos a nuvem, ficam visíveis as relações de poder que perpassam o funcionamento da rede, desde a camada da infra-estrutura física até a esfera das decisões algorítmicas. Passamos a levar em conta que situar de onde viemos, onde estamos e quem somos, em todas suas dimensões de gênero, sexualidade, raça, classe, etnia, cultura e nacionalidade, importa na nossa relação com essa tecnologia”
É preciso descolonizar as tecnologias
“Sem uma IA poderosa genuinamente brasileira e sem grandes empresas de tecnologia, nosso destino como país colonizado mais uma vez está selado, desta vez na seara digital”, defende Edgard Piccino sobre a necessidade de voltar o olhar para a soberania democrática.
De acordo com o analista de dados, o governo Lula está dando importantes passos para alcançar a soberania digital, “mas ainda são tímidos, em face à necessidade. O maior empecilho está no Congresso Nacional, que, em vez de atuar de forma coesa em prol da soberania do país, é composto por parlamentares que buscam, individualmente, garantir sua própria reeleição. Para isso, procuram agradar aos poderosos e acumular fortunas, de maneira lícita ou ilícita”, afirma.
A soberania brasileira está em risco. Para mitigar esse cenário, o terceiro governo Lula implementou a Estratégia Nacional de Governo Digital (ENGD), focada na construção de infraestruturas públicas digitais e na unificação de serviços públicos em plataformas digitais. No entanto, investir em tecnologia não é suficiente para garantir soberania digital. O país precisa de uma regulação sólida para assegurar que as big techs respeitem suas leis e regras nacionais e permitam que o país desenvolva o seu próprio ecossistema tecnológico independente.
Transparência, explicabilidade, boa governança de dados e accountability são pilares de uma governança ética das redes e da Inteligência Artificial. O propósito não é limitar a tecnologia, mas sim garantir seu avanço seguro e confiável, em conformidade com as normas regulatórias. IAs só recebem ordens, as escolhas ainda são feitas pelas pessoas. Os sistemas podem ser treinados para o bem social, defendem especialistas.
LEIA TAMBÉM: Falta de transparência algorítmica e institucional dificulta regulamentação da IA, alerta estudo