Para quem acha que já viu de tudo no Brasil em termos de truculência política da extrema direita, saiba que sempre há espaço para atitudes ainda mais tresloucadas. E uma delas ocorreu na última quinta-feira (23), em Teófilo Otoni, município mineiro de 137 mil habitantes na região do Vale do Mucuri, ao norte do estado. O prefeito da cidade, o bolsonarista Coronel Fábio Marinho (PL), literalmente mandou invadir o Hospital Bom Samaritano, referência no tratamento de câncer numa área que abrange 64 municípios e com população total de um milhão pessoas. A ordem foi cumprida por vários servidores da Prefeitura, muitos deles policiais aposentados ou licenciados, segundo colaboradores do lugar, tudo para promover um teatro que sustentasse uma farsesca “intervenção” à margem da lei decretada pelo chefe do poder Executivo.
Na ação descabida e violenta, funcionários da unidade assustados tiveram que trabalhar sob pressão da tal “tropa” enviada por Marinho, enquanto pacientes já fragilizados assistiam à gritaria perplexos e com medo da escandalosa investida do “gestor” municipal contra o hospital. Segundo o vereador João Gabriel Prates (PT), em meio ao pandemônio instaurado, não é possível saber se equipamentos e documentos foram retirados do local, já que portas teriam sido arrombadas pelos invasores sob ordens do prefeito, como mostram imagens que circulam nas redes sociais.
O Hospital Bom Samaritano, que tem estrutura dos chamados “hospitais do câncer”, é uma unidade filantrópica administrada pela Associação Beneficente Bom Samaritano, cujas contas são superavitárias e o serviço é tido como muito bom para os usuários do SUS, num país em que a saúde pública nem sempre é de qualidade. Não há qualquer poder por parte da prefeitura, em termos hierárquicos, que permita uma atitude de intervenção como a decretada, muito menos utilizando violência e expedientes “militares”. Mas o “coronel” que governa Teófilo Otoni resolveu “decretar” a tal intervenção e insistir na “operação”, mesmo ao arrepio da legislação.
A patacoada de contornos milicianos não durou muito. Já no dia seguinte, uma decisão do desembargador Pedro Aleixo, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), suspendeu todos os efeitos do famigerado decreto nº 8.573/2025 assinado por Marinho, que colocava a unidade em suas mãos, classificando a operação de invasão do hospital como “abusiva e ilegal”. O mencionado decreto, para ser mais preciso, sustava um outro decreto, datado de 23 de outubro de 2024, sob número 8.543/2024, que por sua vez sustou o fim de uma intervenção municipal que vigorava na unidade hospitalar até então.
A situação que se desenrolou com a invasão capitaneada pelo bolsonarista, com auxílio de seus “assessores”, foi tão destrambelhada que uma verdadeira unanimidade jurídica se construiu contra a medida. O Ministério Público de Minas Gerais e a Defensoria Pública também já tinham se manifestado veementemente contra a “intervenção” napoleônica de Marinho. Uma decisão por parte do juiz da Comarca de Teófilo Otoni igualmente classificara a empreitada abrutalhada como nula e sem base jurídica.
“O que vimos foi uma ação de truculência e autoritarismo. O prefeito Marinho usou a força e o abuso de poder para desmantelar uma instituição que presta um serviço imprescindível à população”, destacou o magistrado em sua decisão.
Vídeos que circulam nas redes sociais e em aplicativos de mensagens mostram a confusão instaurada no Hospital Bom Samaritano. Ao melhor estilo bolsonarista, os emissários do prefeito gritam e reverberam versões de que “o hospital se tornou um puxadinho do PT”, o já conhecido e batido discurso conspiratório que encontra na “esquerda” um espantalho para justificar os maiores assombros. A tentativa de retomar o controle da unidade, por meio de um decreto que sustou o fim de um outro decreto, era, ao fim e ao cabo, para que o grupo político de extrema direita que governa a cidade se apoderasse da administração do Bom Samaritano.
No vídeo abaixo é possível ver um integrante da gestão de Marinho dando um escândalo e culpando "o PT" pela intervenção que a atual administração está promovendo:
Comprovando tal tese, o nomeado como interventor na “quartelada” de Marinho é o enfermeiro Lucas Tavares Nogueira, a quem o prefeito concedeu “poderes gerais de gestão, com os direitos e deveres relativos ao encargo”. O interventor apressou-se em aparecer nas redes assumindo a função, discursando ao lado do secretário de Saúde do município, Cícero Santana. Em sua conta no Instagram, Lucas aparece numa clássica foto vestindo camisa da seleção brasileira dentro de um automóvel, retrato típico dos seguidores do ex-presidente inelegível que enfrenta problemas com a Justiça por ter tentado um golpe de Estado após ser derrotado nas urnas em 2022.
Lucas também surge numa gravação ao lado do vereador bolsonarista Ota Mandinha (PL), que recentemente publicou um vídeo desrespeitoso atacando por meio do deboche os profissionais da enfermagem que atendem no serviço público. O registro seria um “pedido de desculpas” do edil que se fantasiou de “enfermeira mal-educada”, mas o que se viu foi uma espécie de contorno da situação, que ocorreu na presença do presidente da Câmara Municipal, o também bolsonarista Ugleno Alves (PL), que em seu perfil na mesma plataforma se apresentou durante o período eleitoral de 2024 como “o candidato do Nikolas Ferreria em Teófilo Otoni”, posando ao lado do extremista, o "rei das fake news", que atua em Brasília.
Nas redes, personalidades da sociedade civil e moradores do município se mostraram indignados com o rompante do bolsonarista, pedindo respeito ao hospital, que há décadas presta um serviço insubstituível à comunidade daquela região mineira. A atual gestão é inclusive elogiada pelos usuários do equipamento, afirmando que a unidade presta atendimento aos doentes de câncer de forma primorosa.
Procurada, a assessoria de comunicação da Prefeitura de Teófilo Otoni respondeu à Fórum e negou que tenha ocorrido uma invasão ao Hospital Bom Samaritano, afirmando ter agido dentro da mais estrita legalidade. No documento enviado à redação, dividido em nove tópicos, a administração municipal elenca respostas para as informações apresentadas na reportagem.
A Prefeitura afirma que não houve truculência nas dependências da unidade hospitalar e que a ação, que teria sido normal, foi em conformidade com uma decisão da 1ª Vara Cível da Comarca de Teófilo Otoni, que teria entendido pela legitimidade da intervenção. A resposta também aponta que nenhum servidor envolvido no episódio acessou áreas ambulatoriais ou de atendimento aos pacientes, tendo ficado restrita a ação ao bloco administrativo do Bom Samaritano. Tudo teria sido acompanhado por três viaturas da Polícia Militar.
Ainda na resposta, o poder público municipal da cidade mineira diz que a versão apresentada pela administração anterior para suspender um outro decreto, que foi sustado pelo decreto atual, não seria verdadeira. A administração do prefeito Coronel Fábio Marinho (PL) afirma que o hospital não tem boa saúde financeira e que segundo dados da Receita Federal apresenta um déficit de mais de R$ 12 milhões, insistindo na tese de que o PT “usa o local como cabide de emprego”, reforçando ainda que existiria uma dívida de R$ 3 milhões contraída pelo hospital apenas com fornecedores de material do setor oncológico.
Por fim, a Prefeitura de Teófilo Otoni disse que cumpriu o que determina a lei ao sair da administração do Bom Samaritano após a decisão proferida pelo TJMG, e que a Procuradoria Geral do município está interpondo nesta quarta (29) um pedido de agravo de instrumento para reverter a situação atual, que recolocou a Associação Beneficente Bom Samaritano à frente da administração da unidade.