A reunião de cúpula desta terça-feira (30), em Brasília, com a presença de 10 líderes sul-americanos, projeta o Brasil no cenário internacional, depois do período de ostracismo que marcou a era Bolsonaro. Conversamos com o jornalista e professor de Relações Internacionais na UFABC, Gilberto Maringoni, que analisou a iniciativa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Fórum: O governo Lula acerta em convocar a cúpula com praticamente todos os países sul-americanos?
Maringoni: O presidente Lula age corretamente em convocar essa reunião e, sobretudo, em dirigir o centro da sua diplomacia para a América do Sul. Esse foi sempre o espaço por excelência da diplomacia brasileira desde pelo menos da gestão do Barão do Rio Branco (1902-1912), que estabelecia uma soberania compartilhada no continente entre a Argentina, o Chile e o Brasil. Era o pacto ABC. Nas décadas seguintes, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial, houve uma espécie de disputa entre Brasil e Argentina que se acentua no final do século, na época do governo Carlos Menem, na Argentina, e durante o governo Fernando Henrique Cardoso, aqui no Brasil. Mas a liderança do Lula e a crise argentina acabaram por colocar o Brasil numa proeminência nesse processo. Ter liderança não quer dizer ter supremacia, não quer dizer ter hegemonia no continente, mas ser o articulador principal entre países com orientações políticas, com governos diferentes e culturalmente distintos. No caso do presidente Lula, nessa nova articulação, há uma novidade, a pretensão é não colocar fronteiras ideológicas, fronteiras políticas entre os governos.
Fórum: Até que ponto a estratégia de possível retomada da Unasul e de um Conselho de Defesa regional é importante para a região?
Maringoni: A reativação da Unasul tem uma característica distinta da primeira versão da Unasul, que foi enterrada por Sebastián Piñera, Jair Bolsonaro e Maurício Macri. Ela era ampla, mas ficou muito marcada como uma iniciativa dos governos de centro-esquerda, dos governos progressistas, quando foi criada no final da primeira década do século. Lula convocou absolutamente todos os mandatários do continente, inclusive presidentes abertamente de direita. A tentativa é fazer uma instituição que ultrapasse o mandato de cada presidente pra ser um órgão multilateral permanente, como a OEA, a ONU e outras instituições mundiais. Então, o acerto do Lula é muito grande. E ele se coloca aí, apesar das dificuldades que o governo está tendo internamente, como uma liderança inconteste no continente. E sendo uma liderança inconteste no continente, alguém de suma importância no contexto mundial.
Fórum: Que mensagem no cenário das relações internacionais um encontro como este pode lançar?
Maringoni: A principal mensagem que o Lula manda, que o Brasil manda, e que a própria reunião, se ela tiver êxito, pode enviar, é a existência de uma articulação mais fina entre os países da América do Sul. Numa carta ao Lula na semana passada, publicada na imprensa, o Pepe Mujica disse o seguinte, é preciso que os presidentes da América do Sul estejam permanentemente em contato. É aquela história que mais ou menos existia do telefone vermelho na época da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética. Isso não quer dizer que haja concordância e proximidade, mas os presidentes têm de estar de alguma forma conectados. Também não significa fazer uma lista de ZAP entre os presidentes, mas as suas chancelarias estarem em permanente articulação entre os países para evitar, primeiro ruídos, mas, sobretudo, tentar articular temas muito sensíveis, em especial, aqui na América do Sul, a questão ambiental, a questão social, a questão sanitária - não vamos esquecer da presença importante da ministra da Saúde, Nísia Trindade, na visita que o Lula fez à Argentina, questão que ganhou importância durante a pandemia, porque a América Latina foi a região no planeta que proporcionalmente mais letalidade teve em relação ao tamanho da população. Este tipo de articulação entre ministérios pode ser um dos grandes saldos desta reunião. A reunião em si é um ponto de apoio fundamental na articulação dos presidentes da América do Sul. Não é uma articulação político-ideológica, mas uma articulação institucional entre Estados, ou seja, mais permanente que um mandato de presidente ou presidenta.
Fórum: Como avalia a reaproximação à Venezuela e as críticas da oposição?
Maringoni: A entrada da Venezuela, ou seja, a volta da Venezuela, não só à Unasul, mas ao concerto das nações, é uma necessidade, ela foi expulsa do Mercosul por iniciativa do Brasil em 2016, logo que o José Serra chega ao Ministério das Relações Exteriores, com as primeiras medidas para impedir que a Venezuela assumisse a presidência pro tempore do Mercosul. E ela não consegue. A Venezuela é retirada e fica suspensa. Ela não está expulsa, mas está numa situação congelada. Está numa espécie de limbo institucional. Ela volta agora depois de 8 anos. Lula ressaltou muito isso no seu discurso junto a Maduro. E essa volta representa uma integração que é positiva para o Brasil, positiva para os países da América do Sul. O Brasil tinha um grande comércio com a Venezuela, que foi suprido pelos chineses. Vai ser difícil retomar. Tem a questão da dívida venezuelana, que é plenamente negociável. Vai ser bom pra democracia na Venezuela, amenizar o impacto que as sanções tem na economia. Na última vez que fui lá na Venezuela em 2019, a situação era muito precária. Não podemos nos esquecer que a Venezuela passa por uma crise na produção de petróleo. A indústria de petróleo venezuelana está sucateada por causa de erros monstruosos que os governos Chávez e Maduro fizeram, mas também pela falta de financiamento. A reentrada simboliza a quebra de um isolamento, não da Venezuela, mas de políticas de articulação dos países da região.
Fórum: E como acompanhou a coberta da imprensa brasileira?
Maringoni: A imprensa brasileira é impressionante! A chegada do Maduro foi objeto de críticas e coros contrários por parte da mídia e por parte da direita no Congresso. A Folha de São Paulo chega ao ponto de dizer que, sem citar fontes, setores do próprio governo ficaram surpresos pelo fato de Maduro ter sido recebido como chefe de Estado. É a piada pronta. Quer dizer que Maduro é o quê? Chefe de cozinha? Chefe de redação? É chefe de Estado e tem que ter recepção de Chefe de Estado. A GloboNews não só cobriu a entrevista coletiva entre os dois líderes, mas depois fez aquela sabatina, uma espécie de malhação de judas de quase uma hora com os seus comentaristas mais conservadores, denunciando como se fosse um absurdo, como se o Brasil tivesse adentrado numa maldição qualquer ao receber Nicolás Maduro. Faz parte, isso faz parte, como dizia um antigo integrante de um reality show há quase 20 anos.