O Brasil acompanha há anos o noticiário que traz as ações e desmandos das milícias que operam na segunda maior cidade do país, o Rio de Janeiro. Com os casos bárbaros ocorridos nos últimos tempos e com a ascensão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no cenário político nacional, já que ele e seus filhos foram por anos incentivadores e homenageadores desse tipo de quadrilha do crime organizado, os termos “milicianos” e “milícias” cada dia mais fazem parte do vocabulário dos brasileiros.
No entanto, só consegue mesmo ter noção do que é a realidade de vida de quem vive sob o jugo desses bandos aqueles que estão lá, morando nas áreas controladas por esses criminosos. A Fórum ouviu um relato detalhado de como é o cotidiano num bairro dominado pela milícia. Como agem, como se comportam, o que exigem, como se relacionam com os moradores? O desabafo a seguir, até certo ponto resignado, é de um homem, cuja identidade não será revelada por motivos de segurança, que vive no bairro da Praça Seca, na região de Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio, e que há muito tempo convive com o medo.
A milícia é dividida por grupos e cada grupo vai ter uma atuação diferente. Aqui na Praça Seca, por exemplo, antes tinha um grupo que dominava, aí rolou um “golpe” e agora tem outro... Eles têm maneiras bem diferentes de agir com os moradores. Com os caras de antes, todos os serviços essenciais eram normais, tudo funcionava... Tinha OI, Net, Claro e tinha também o serviço clandestino oferecido por eles, mas era a um preço popular, abaixo do valor das empresas grandes... Era a mesma coisa com a TV... Aderia só quem quisesse, não tinha nada obrigado.
Aí, em 2020, com a união dessa milícia atual com a milícia do Rio das Pedras, eles expulsaram todos os serviços da região, todos mesmo... E aí obrigaram a população a usar o serviços oferecidos por eles. Nas vias principais aqui da área ainda funcionam os serviços das empresas grandes, mas nas comunidades que eles dominam é só o serviço deles, que é mais caro que o das empresas convencionais... E é de péssima qualidade, tanto a TV quanto a Internet, ruins demais... E caros... Aí deixou as pessoas meio que “órfãs” e necessitando desses serviços... Até porque, aqui nas comunidades da Praça Seca tem partes que ficam em áreas de mata e sinal é muito ruim, então muitos ficam na dependência desses serviços péssimos oferecidos por eles, e se reclamar eles tratam muito mal as pessoas, eu canso de ver isso aí
No tempo da outra milícia eu nunca via esses homens armados... Esses caras armados vieram com a nova milícia, que trouxe pra cá essa roupagem de favela, com arma, droga, baile, festinhas, cobranças de taxas, de luz, de água, de “segurança”, isso aí é coisa dessa milícia de agora... Eles chegaram expulsando morador, batendo em quem chegava tarde, raspando a cabeça de mulher que eles achavam que ia pra baile funk... E tudo isso aí com muitos homens armados e cobrando a tal da taxa de segurança, às vezes até tarde da noite... Pessoal bem agressivo, truculento... Momento bem conturbado esse período deles, principalmente no começo, porque teve muitas expulsões, coisa injusta. Cismavam com alguém de forma aleatória e expulsava, tinha que sair de lá na hora
Com lance de polícia é aquilo. Antes a gente sabia que tinha, mas não era nada explícito... Se vacilar você sequer sabia quem era o miliciano... Só que com a mudança isso ficou nítido demais, o pessoal do 18°Batalhão tá direto aqui com eles, bebem juntos, festas faz junto, é uma parada pública, nada escondido... A questão da milícia é bem complicada, né... Porque eles convivem com a gente em sociedade, você encontra com eles no shopping, na praia, se vai viajar pro lado da Região dos Lagos... Se acham plantonistas a serviço paralelo do estado... Só que essa mesma milícia consome droga, rouba, rouba carros, e isso é coisa comum... Rouba motos... “De defensores da lei” eles não têm nada... E acaba que quem vive numa área de milícia, que conhece eles, que reconhece eles em todo o canto, não vai falar nada... Ninguém nunca denuncia, e é por medo... Já teve gente que foi na 28° DP denunciar eles, e quando chegou na comunidade de volta tava expulso.
É complicado porque, ao contrário do que todo mundo pensa, eles não têm nada que os identifique como miliciano e tal... Muitas vezes tinha gente que só descobre quando eles batem na tua porta pedindo o dinheiro da taxa de segurança, que tem dias fixos pra isso... No mais, são homens comuns que vivem entre nós.... Que te cobram R$ 70 para ficar em “segurança”, que depois passaram a cobrar R$ 35 pela água... Que são contra o crime, mas que eles mesmos roubam.