A mãe de um garoto de 10 anos com transtornos psiquiátricos, que teria sido abusado sexualmente no Hospital das Clínicas de São Paulo por um outro paciente menor de idade, de 12 anos, e com diagnóstico semelhante, denuncia que a instituição não foi responsabilizada por negligenciar a segurança de seu filho e que a Polícia Civil paulista não investigou como deveria o episódio, ocorrido num dos mais importantes e renomados complexos hospitalares do Brasil, vinculado à Faculdade de Medicina da USP. Ela tem consciência de que o caso é um fato atípico e que vítima e autor são inimputáveis, mas questiona a condução dada pelos órgãos públicos.
O caso teria ocorrido em 18 de novembro do ano passado, quando o menino estava em tratamento no Hospital Dia do HC, unidade onde os doentes passam por tratamento e outras terapêuticas durante o dia e depois voltam para casa para dormir. Ele era paciente do Instituto de Psiquiatria (IPq) e registrou uma internação convencional no Hospital das Clínicas meses antes do ocorrido.
Valéria* (nome fictício) conta que seu filho sofre de TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), TOD (Transtorno Desafiador Opositivo) e Síndrome de Tourrete, uma condição que provoca movimentos físicos e sons vocálicos involuntários. O garoto, que já tinha um histórico grave de depressão, vinha apresentando um quadro mais agressivo e ideações suicidas após traumas ocasionados por perdas afetivas na família, o que o levou então à sua internação no HC, iniciada em junho de 2021, e que durou quase dois meses. O autor do abuso conheceu o filho de Valéria no mesmo período, visto que também estava internado na mesma ala do hospital, e já apresentou desde um primeiro momento comportamentos considerados inapropriados, como chamar o garoto de 10 anos para ir junto com ele ao banheiro. Neste momento, a mãe da vítima já teria avisado a mãe do pré-adolescente sobre o problema, assim como os funcionários da ala onde os menores estavam internados.
“Nesse primeiro período da internação, tinha esse pré-adolescente junto internado, e eu cheguei a ver ele chamando meu filho duas vezes ao banheiro. Então eu comuniquei à mãe e falei para a equipe que era bom ficar de olho, porque aquilo não parecia muito certo”, contou Valéria.
Após alta da internação convencional e alguns meses em tratamento no Hospital Dia, a mãe relatou à reportagem da Fórum que em 18 de novembro precisou ir rapidamente à farmácia do HC para retirar medicamentos da criança, enquanto o filho realizava acupuntura, ao passo que outros pacientes infantis faziam outros tipos de terapia no setor. O garoto de 12 anos, que despertava a desconfiança de Valéria havia meses, também estava na mesma ala naquele momento.
“Meu filho estava esse dia acompanhado e fazendo acupuntura. Aí, eu avisei ao enfermeiro que precisava ir à farmácia pegar os medicamentos, que é ali mesmo no HC. Foi algo rápido, menos de 30 minutos, e a sessão de acupuntura demorava 40 minutos ou mais. Quando eu voltei, a psicóloga já chegou perguntando pelo meu filho, porque ele tinha que entrar numa outra terapia. Eu falei a ela que tinha deixado o menino na acupuntura, só que quando eu cheguei na acupuntura, ele já não estava. Olhei na sala das mães e nada, fui no pátio e ele também não estava. Uns instantes depois o pré-adolescente respondeu a mim e à psicóloga dizendo que meu filho estava no banheiro e que não passava bem. Eu entrei e encontrei ele lá. Foi aí que ele me contou o que o outro garoto tinha feito, que tinha abusado dele”, relatou a mãe da criança.
Valéria conta que uma psicóloga estava com ela quando o filho foi encontrado e relatou o que havia acontecido. Ela disse ainda que procurou vários outros funcionários do setor para pedir ajuda, indo inclusive ao departamento de Assistência Social, mas a responsável já tinha ido embora. Ao perceber que não estavam dando ouvidos ao seu desespero, ela então chamou a Polícia Militar, momento em que uma coordenadora responsável pela área apareceu, pediu para que ela “não fizesse escândalo” e a aconselhou a ir registrar formalmente o ocorrido na delegacia “porque tinha certeza que não tinha acontecido nada” entre os dois menores.
“Uma coordenadora apareceu e disse que era pra eu não fazer escândalo, que agora, que tinha chamado a polícia, podia ir fazer o BO porque ela tinha certeza que não tinha acontecido nada. Ainda disse que eu estava piorando tudo e causando mais um trauma para o meu filho”, contou Valéria.
A mãe foi conduzida com o filho e funcionários do Hospital das Clínicas ao 14° Distrito Policial, em Pinheiros, e lá um boletim de ocorrência foi elaborado. O delegado solicitou vários exames e o garoto realizou todos.
A Fórum teve acesso aos resultados desses exames, que mostraram que o menino de 10 anos realmente tinha sofrido abuso. No entanto, Valéria diz que a Polícia Civil não instaurou qualquer procedimento para averiguar os funcionários do HC, que segundo ela teriam responsabilidade em relação à integridade e à segurança do filho, que naquele momento era um paciente da instituição e deveria estar sob vigilância dos profissionais do Hospital Dia.
“Eles falaram para mim que não houve crime. Eu sou leiga, né? Eu sei que o menino de 12 também tem problemas e não pode ser responsável pelo que fez, mas e o hospital? Eles tinham que impedir que coisas assim aconteçam... Não houve culpados? Como não? E a polícia também não poderia ter deixado de apurar a responsabilidade do hospital”, protestou indignada.
Pacientes devem ser protegidos, é a lei
Vanessa Ziotti é advogada e diretora jurídica do Instituto Lagarta Vira Pupa, uma rede de apoio para mães, famílias e pessoas com deficiência de todo o Brasil. Para ela, é inquestionável a responsabilidade do Hospital das Clínicas no caso do abuso do garoto de 10 anos.
“A pessoa com deficiência, na Lei Brasileira de Inclusão, tem artigos específicos que tratam sobre como deve ser o tratamento delas nas instituições de saúde, notadamente sobre o acompanhamento que a ela é assegurado. Nós temos, nesse caso especificamente, o que chamamos no Direito de ‘fato atípico’, praticado por inimputáveis, mas a responsabilidade pelo que ocorreu, é sim, do hospital ou da instituição que não tinha profissionais aptos para preservar a saúde, a integridade ou a segurança daquelas pessoas envolvidas”, disse Vanessa.
A advogada vê neste episódio uma situação que não é rara em entidades públicas e privadas que lidam com cidadãos nessas condições. Para ela, a responsabilidade dos profissionais do HC é evidente quando fazemos algumas perguntas simples em relação ao ocorrido.
“Isso só demonstra que as entidades públicas e privadas de saúde não estão prontas para lidar com pessoas com deficiência e suas especificidades. Não existe treinamento adequado, seja para lidar com pessoas de forma particular, ou para lidar com elas em conjunto. Isso mostra que muitas vezes o que temos é um depósito de pessoas. O que nós nos perguntamos, numa situação assim, é: em que condições essas crianças e adolescentes ficavam ali, que não estavam sendo observados? Por que não estavam acompanhados e estavam desassistidos? Em que momento ficaram sozinhos para que isso pudesse acontecer?”, completou a diretora jurídica.
O que diz o Hospital das Clínicas
A Fórum procurou a assessoria de imprensa do HC para que ouvir o posicionamento da instituição em relação ao caso, que respondeu com uma nota. “O Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) informa que, ao tomar conhecimento da ocorrência à época, imediatamente instaurou processo de apuração preliminar interna que já se encontra em fase final.”
O que diz a Secretaria de Segurança Pública de SP
A Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SPP), pasta responsável pela Polícia Civil, também foi procurada pela reportagem da Fórum para responder às acusações de que a condução do caso realizada pelas autoridades do 14° DP não teriam levado em consideração a responsabilidade do Hospital das Clínicas no episódio envolvendo os dois menores incapazes. O órgão respondeu apenas que "o caso foi registrado pelo 14º Distrito Policial (Pinheiros), que por envolver menores de idades, os fatos foram encaminhados à Vara da Infância e Juventude e outros detalhes serão preservados".